O título deste artigo traz uma frase do cronista Nelson Rodrigues, que já se popularizou pelas redes sociais. Se vasculharmos as redes sociais, encontraremos alguns direitistas respondendo, com a célebre frase, a alguma acusação de reacionarismo feita por um esquerdista. Embora seja inegável que a frase seja ótima, o que exatamente é essa coisa que não presta pela qual devemos reagir?
Eu sou reacionário, mas não no sentido atribuído hoje ao termo, por exemplo, referindo-se aos entusiastas do Regime Militar, mas sim em um sentido mais profundo, ou seja, identificar toda a modernidade como um erro sociológico, metafísico e cultural. Parto de uma rejeição aos movimentos e dinâmicas sociais que gestaram a modernidade, como a própria modernidade em si. Uma visão que vê na modernidade, e claro, na contemporaneidade, uma soma de fenômenos históricos que fazem parte da decadência do que chamamos de Civilização Ocidental. Essa decadência se choca com as bases profundas do Ocidente, fincadas na Tradição Católica, unida ao que há de bom no pensamento grego e nas institucionalidades romanas, sintetizado no período medieval em seu apogeu, ou seja, o apogeu do próprio Ocidente. Entretanto, penso que a decadência que vivemos não começou com nenhuma ideologia política ou revolução dos últimos trezentos anos, mas sim quase mil anos atrás, no final da mesma Idade Média, na chamada Escolástica Tardia, quando figuras como Duns Scotus e Guilherme de Ockham deram a base para os dois erros que levaram a Cristandade ao seu fim, que terão como síntese o relativismo, a perversão moral, a degeneração de toda ordem e outros males.
O voluntarismo teológico de Scotus afirmava a vontade de Deus como um absoluto, não havendo bem enquanto essência, mas como vontade de Deus. É o Deus do arbítrio. Então, Deus não criou o mundo de acordo com uma ordem racional e essa ordem é percebida pela razão humana. Opondo-se à visão tomista de que as ações não são boas ou más apenas porque Deus as comanda ou proíbe, mas porque elas são consistentes ou inconsistentes com a ordem racional estabelecida por Deus. Portanto, o bem e o mal não eram mais identificados objetivamente pela razão natural, já que a vontade não seria mais uma faculdade subordinada à razão, mas o inverso. O relativismo moderno estava ali, que seria complementado com o nominalismo de Guilherme de Ockham, que negava os conceitos e formas como essência nos entes, mas como meras formulações que o homem construiu para nomeá-los.
Dessa forma, temos ambas as formulações filosóficas e consequências históricas que levaram aos problemas da modernidade que eu rejeito.
E aqui, cabe descrever tais problemas.
O nominalismo de Ockham vai separar a fé e a razão, pois não seria possível conceber, pela razão natural, as essências dos entes, uma vez que os conceitos são concebidos como mera construção individual. Por isso, o nominalismo vai influenciar o primeiro grande movimento de ruptura com a Cristandade, a Reforma Protestante, que vai se apegar somente à justificativa pela fé e a uma tendência ao fideísmo. Ockham, com o protestantismo como fruto, rompeu com a concepção tomista de harmonia entre a fé e a razão, tendo a razão natural como uma forma de conhecer as verdades reveladas e acabou por criar um abismo entre a fé e a razão. Além disso, a compreensão nominalista-luterana de particularidade levará ao subjetivismo da própria Sagrada Escritura e às diversas interpretações, e a já fragmentada Europa passaria a vivenciar divisões, das divisões, das divisões…
Como nos diz o Padre Leonel Franca, na obra “A Igreja, a Reforma e a Civilização”:
“Em presença de um texto, Lutero dá uma interpretação, Calvino outra, Melanchthon outra, Zwínglio outra, Carlostadt outra, Bucero outra, uma os anglicanos, outra qualquer, outra cada uma das mil seitas protestantes. Serão todas infalíveis? Qual a verdadeira? Para chegarmos a esta babel religiosa, teria Cristo confiado a sua palavra ao mundo? Não há, pois, a exigência de uma autoridade infalível instituída ao lado do depósito divino, para assegurar-lhe a integridade sobrenatural. De nada vale um livro infalível em mãos de homens falíveis no interpretá-lo.”
(Rio de Janeiro; Agir; 1958; p. 135)
Pelas mesmas bases em que desvinculou fé e razão, teologia e filosofia, Ockham vai desvincular Igreja e Estado. Podemos dizer tranquilamente que Ockham é, juntamente com Marsílio de Pádua, o pai do Estado Laico, cujas consequências conhecemos: indiferentismo religioso; positivismo jurídico, não mais subordinando as normas à lei natural; transformação da religiosidade em mera convenção particular; desvinculação entre Estado, Política, Governo e Direito da moral cristã, consequentemente, um poder secular amoral, relativista e absoluto. Um Estado desvinculado também do Direito Natural. Nesse caso, voltamos a Scotus, pois a relação entre o voluntarismo de Scotus e o abandono do conceito de lei natural está no fato de que a teoria do voluntarismo, ao afirmar que a vontade é a fonte última do direito e da moralidade, mina a ideia de que existe uma ordem moral objetiva que possa ser descoberta pela razão humana. Com isso, o voluntarismo ajudou a desacreditar o conceito de lei natural como uma base sólida para a ética e o direito.
Se o nominalismo negará os universais pela particularidade, o método cartesiano, em continuidade, colocou o indivíduo como centro do conhecimento, de forma que a filosofia não deveria mais partir da realidade do mundo externo, mas do conhecimento da própria faculdade do conhecer. Uma filosofia que abandonou o Ser, a categoria mais universal que tem em Deus a plenitude e perfeição, e que o homem participa de alguma forma do Ser (Analogia do Ser que foi negada por Scotus), para se tornar a filosofia da Epistemologia, ou seja, uma filosofia do estudo sistemático do conhecimento.
O nominalismo contribuiu para a tendência do cientificismo moderno (não confundamos com ciência) de se concentrar apenas nos aspectos quantificáveis da realidade, ao mesmo tempo que se afasta ou até mesmo nega questões de âmbito metafísico e ontológico. Ora, observemos que o cientificismo moderno só se fundamentou graças a tese de que as realidades universais não estavam ao alcance da razão, mas dessa, apenas o alcance das coisas sensíveis e materiais, não havendo mais o entendimento das formas inteligíveis. Conceitos não explicados pelo empirismo científico não faziam mais sentido, como a concepção de pecado original e de imortalidade da alma.
Daí para frente, o pensamento ocidental será composto por diferentes intelectuais que dirão que a realidade não empírica e não sensível não pode ser compreendida pela razão natural, portanto, não deve ser o centro do objeto de estudo. Somente a natureza é realidade de estudo e toda a realidade humana deve se basear no uso continuo e perpetuo da razão na natureza.
Entre os iluministas, temos o exemplo de Diderot, que rejeitou a metafísica escolástica e adotou uma visão empirista e materialista da realidade, acreditando que todas as nossas ideias e conceitos são derivados da experiência sensorial e que a realidade é composta apenas de matéria e movimento. Diderot também defendia a ideia de que a linguagem é convencional e arbitrária.
O resultado de todos esses movimentos estão presentes no relativismo e na secularização. A partir daí, o homem que negou os princípios universais ou verdades universais entra em uma crise de ordem moral profunda, pois ao negar as verdades universais e a essência dos elementos morais, a tendência é o materialismo, pois passa-se a considerar como existente apenas a realidade imanente empírica. Da mesma forma, ao negar a universalidade moral, Bem e Mal se tornam conceitos relativos ou subjetivos, não há Deus, não há transcendência. O homem se torna livre da forma mais perversa possível; a ele tudo é permitido. Como nos alertou Dostoiévski, “se Deus não existe, tudo é permitido”.
Essa ausência moral da modernidade também refletiu em um processo de decadência até mesmo do que chamamos de elite. A modernidade também trouxe uma transição entre a elite nobre para a elite burguesa. A primeira tinha por legitimidade os Códigos de Cavalaria, em que as virtudes teologais – a fé, a esperança e a caridade – e cardinais – a prudência, a justiça, a temperança e a fortaleza – eram a base do agir do cavaleiro e guerreiro nobre, que se legitimava pela dedicação à fé cristã, à defesa dos mais necessitados, à justiça na guerra quando precisava defender os mais fracos, a própria Igreja, o feudo, o vassalo, as guildas, etc. Era um homem que se sacrificava pela crença em Deus, por princípios e valores universais e imutáveis. Digno de um período em que o homem concebia a realidade natural como uma forma imperfeita de uma realidade perfeita que transcende a materialidade, e que suas ações deveriam ir em direção à prática mais próxima possível da bondade, que é parte da realidade transcendente, por isso o agir pelas virtudes, nem que para isso fosse necessário o sacrifício na guerra.
A segunda, a nova elite burguesa, que ascendeu no decorrer da modernidade e se formou enquanto filosofia com os pensadores do século XVII e XVIII, é digna de um período em que o homem se afastou de Deus e passou a conceber a realidade como matéria e movimento, alheia a virtudes e formas transcendentes, já parte de um mundo antropocêntrico, em que o homem se volta para o próprio homem, vai se legitimar pelo individualismo, pelo pragmatismo, pela acumulação de capital e poder econômico e político. Enquanto as elites nobres tinham uma forte identidade cultural e uma ética de honra e cavalheirismo, as elites burguesas tendem ao individualismo pragmatista, buscando maximizar seus lucros e sua influência política. O homem atual é racionalista, subjetivista e relativista, as elites burguesas atuais se legitimam por características consideravelmente inferiores, o homem se tornou antropocêntrico, se transformou em Deus e passou a legitimar toda a ordem social em um individualismo racionalista desvinculada de costumes, tradições e normas morais universais.
Do relativismo e subjetivismo, surgem as ideologias para se colocarem no vácuo que se dá ao retirarmos o antigo fundamentador da ordem social, Deus. Na era em que o absoluto não existe mais, as ideologias em disputa na democracia liberal pluralista disputam essa verdade, num regime político bem aos moldes do sofisma de Protágoras: “o homem é a medida de todas as coisas”. Ou então, nem mesmo em disputas argumentativas essas ideologias se apresentam, mas na forma revolucionária. Seja na forma que for, todas as ideologias modernas levaram a mais massacres por iniciativa do poder político do que todas as civilizações humanas conhecidas dos últimos quatro mil anos. No século em que a sociedade ocidental sem Deus era hegemônica, o homem matou mais do que em todos os séculos anteriores. Não há mais o Bem, não há moral absoluta, nem Deus. O resultado disso foram as experiências do século XX.
Quando vemos o aborto e a eutanásia, que são a banalização da vida humana, sendo aceitos como “coisas normais”, vemos o resultado dessa ausência de moral absoluta e relativismo moral. Até mesmo a ideologia de gênero é resultado desse processo, pois nega-se a própria existência enquanto essência do homem e da mulher pela particularidade.
Todos os nossos processos de natureza decadência moral, teológica, social e filosófica, advêm dos erros de Scotus e Ockham, que moldaram a modernidade e a contemporaneidade. Por isso, sou um crítico voraz da modernidade e sigo o reacionarismo autêntico, pois não parto da oposição aos atuais erros em que nos inserimos numa reação tão e somente ao socialismo, ao progressismo, ao identitarismo. Todas essas ideologias são frutos de um problema maior que é a modernidade, incluindo, até mesmo, o conservadorismo, que assim como suas ideologias opostas, é um filho da modernidade. Uma continuação mais lenta da mesma modernidade. Nunca veremos um conservador rejeitar os pressupostos da modernidade ou até combatê-la de forma agressiva. Não defenderão o Reinado Social de Nosso Senhor Jesus Cristo, a Monarquia Tradicional – não a “Monarquia” apenas simbólica como as atuais monarquias constitucionais –, não defenderão o questionamentos do capitalismo liberal, até porque, se colocam como arautos na defesa do ideal burguês. Na verdade, são simpáticos ao liberalismo, não só econômico, como o liberalismo em seu sentido mais extenso – sendo essa mesma divisão conceitualmente problemática.
Basta observar o que diz um dos principais herdeiros do pensamento conservador britânico, com o qual a grande maioria dos conservadores, não só do mundo anglófono, mas de todo o Ocidente, se identifica: Roger Scruton. Em seu livro “Como ser um conservador”, Scruton afirma:
“É nesse ponto que devemos reconhecer o grande valor do liberalismo que, desde o seu nascimento no Iluminismo, tem se esforçado para nos incutir uma distinção radical entre ordem religiosa e ordem política, e a necessidade de erigir a arte de governar sem fiar-se na lei de Deus.”
(Tradução de Bruno Garschagen; revisão técnica de Márcia Xavier de Brito. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Record, 2015.).
Os opositores conservadores dos mais diversos erros da modernidade tentam combater a modernidade pelos meios e pressupostos da própria modernidade. Combate-se os erros modernos com um dos piores frutos da modernidade, o Iluminismo, e reafirma-se a defesa do estado laicista, princípio gestado por Ockham e aderido por conservadores, liberais, e óbvio, socialistas e comunistas.
Portanto, que voltemos a ler São Tomás de Aquino; que voltemos a Tradição da Igreja; que voltemos à lei natural. Não há como sair da crise do mundo moderno sem que voltemos ao que precedeu a decadência da Escolástica. Com as soluções que a própria modernidade e suas diferentes ideologias nos dá, não é possível sair dessa crise. É necessário uma postura reacionária perante o pensamento moderno desde suas origens e combater todos os seus frutos.
Referências:
A Crise da Consciência Europeia 1680-1715, Paul Hazard;
A Igreja, a Reforma e a Civilização, Padre Leonel Franca;
Nominalismo, Idealismo y Realismo, Leonardo Polo Barrena;
As Ideias Têm Consequências, Richard M. Weaver;
Como Ser um Conservador, Roger Scruton.
(Artigo) Um Olhar Filosófico do Conservadorismo, Rodrigo Bueno: https://hermeneuticapolitica.com.br/um-olhar-filosofico-sobre-o-conservadorismo/