No século XX o célebre filósofo John Rawls resgatou o contratualismo imortalizado por Hobbes, Locke e Rousseau para criar um bom artifício filosófico chamado véu da ignorância, sob o véu nos colocamos em uma posição hipotética original, não saberíamos nossa classe social, nossa cultura, etnia ou religião e portanto só assim uma sociedade justa poderia ser gerada… seria uma forma de maximizar o mínimo através da escolha racional do indivíduo, por isso Rawls advoga por um Estado de bem estar social. Considero a explicação de Rawls falha no aspecto econômico, pois sou utilitarista… e também por não enxergar o mundo de maneira materialista…entretanto considero válido que a vida seria sim uma loteria. Mas também sobre bens não materiais, o suicídio, a depressão e a melancolia não acompanham a sua classe social, claro a abundância material pode sim retardar os efeitos das primeiras, mas não resolve o problema. Não cura a doença apenas a impede de ser letal de forma mais rápida. Mais pessoas morrem no mundo hoje através do suicídio que através de guerras ou crimes. Quais são as razões para isso? parafraseando G.K. Chesterton, O que há de errado com o mundo?
Essa é uma pergunta com muitas respostas, conversando com alguns amigos com amplo conhecimento teológico escutei argumentos de que o declínio da religião que gerou essa crise psicológica na humanidade, afinal de contas é muito mais fácil suportar as adversidades da vida quando se tem a crença em algum tipo de transcendência, afinal de contas existirá alguma recompensa depois do fim.
Inúmeras obras fictícias tratam desses temas tão mundanos, mas ao mesmo tempo tão indecifráveis e misteriosos. Dostoievski em certo tom profético visto que o livro é de 1880 na obra os Irmãos Karamazov trata dos desdobramentos de um mundo sem fé, numa passagem famosa o personagem Ivan Karamazov diz “… em tom solene que em toda a face da terra não existe absolutamente nada que obrigue os homens a amarem seus semelhantes, que essa lei da natureza, que reza que o homem ame a humanidade, não existe em absoluto e que, se até hoje existiu o amor na Terra, este não se deveu a lei natural mas tão-só ao fato de que os homens acreditavam na própria imortalidade. Ivan Fiodorovitch acrescentou, entre parenteses, que é nisso que consiste toda a lei natural, de sorte que, destruindo-se nos homens a fé em sua imortalidade, neles se exaure de imediato não só o amor como também toda e qualquer força para que continue a vida no mundo. E mais: então não haverá mais nada amoral, tudo será permitido, até a antropofagia. Mas isso ainda é pouco, ele concluiu afirmando que, para cada indivíduo particular, por exemplo, como nós aqui, que não acreditamos em Deus nem na própria imortalidade, a lei moral da natureza deve ser imediatamente convertida no oposto total da lei religiosa anterior, e que o egoísmo, chegando até ao crime, não só deve ser permitido ao homem mas até mesmo reconhecido como a saída indispensável, a mais racional e quase a mais nobre para a situação, P.109.
Bram Stoker em Drácula por sua vez trás, mesmo aparentemente se tratando de uma obra de terror com definitivamente vários elementos místicos e herdeiro do estilo gótico se trata na realidade de uma obra sobre o amor, o então vilão da história, no passado já havia sido alguém virtuoso, um guerreiro, um herói para seu povo…porém ao perder sua amada acaba sucumbindo a loucura, e amaldiçoado pela vida eterna se tornou um recluso e amargurado vampiro, quando o livro retorna ao presente Drácula toma conhecimento de que sua amada havia reencarnado na personagem Mina Harker e não mede esforços para tê-la novamente em seus braços, e ainda que por um breve período de tempo o vampiro encontra novamente a felicidade, e antes de ter sua existência terminada pelo Dr. Abraham Van Helsing, chega a declarar que “a ausência de amor é o sofrimento mais desprezável”
H.P. Lovecraft em seus inúmeros contos, que acabaram inaugurando o gênero literário chamado de horror cósmico utilizava de metáforas sofisticadas para retratar os absurdos existentes na vida humana, já que existem tantas coisas além da compreensão da humanidade e que tomar conhecimento disso seria o suficiente para deixar alguém louco, totalmente cínico e pessimista, não existe final feliz nas obras de Lovecraft, uma vez que na vida real também não existe, e julgando pela vida que ele teve não dá pra culpar seu fatalismo. Independentemente da escola literária diferente, ou do gênero esses foram autores que de uma forma ou outra conseguiram tratar dos elementos que compõe toda a gama de sentimentos presente na humanidade.
Albert Camus, filósofo francês, foi outro com boas contribuições para a discussão, ele dizia que “pensar é começar a se sentir atormentado”, e esse fato é potencializado nos dias de hoje, um mundo cheio de dúvidas e quase nenhuma certeza, não me admira que a qualidade geral da intelectualidade esteja em queda, a evolução cognitva caminha de forma inversamente proporcional em relação ao bem estar com relação ao mundo, se conhecimento é poder também é uma maldição, não me admira também que as pessoas no mundo moderno transformaram a felicidade em uma mercadoria, com vários Best-Sellers de auto ajuda e coachs motivacionais, por mais que eu tenha restrições a esse tipo de obra eu devo admitir que funciona para a maioria da população, ainda que como uma ilusão. Cedo ou tarde, não importa as fechaduras mentais que você criou para autoengano, o passado sempre volta , os erros, as omissões e arrependimentos.
Camus, Schopenhauer, Cioran e H.P. Lovecraft transformaram a depressão, as indagações sobre a vida e a morte, e a melancolia na escola pessimista de pensamento filosófico, eles não fariam isso se fossem pessoas felizes, realizadas, e desfrutassem das coisas boas que a vida poderia oferecer (embora tenha se negado a oferecer para eles). Talvez a internalização do sofrimento tenha mais importância do que muitos dizem. Na música Dream On, Steven Tyler do Aerosmith traz uma frase interessante, “você precisa perder para aprender a vencer”, mas o que dizer para pessoas que já perderam demais e nunca tiveram o gosto da vitória? Um dos autores de auto ajuda diria para a pessoa continuar perseverando e que cedo ou tarde ela encontrará o seu lugar ao Sol, com todo o respeito, isso é papo furado, é desonestidade intelectual, a frustração e o sofrimento tem valor no amadurecimento das pessoas, o insano mundo moderno praticamente obriga as pessoas a serem felizes e não passar pelo importante processo de internalizar as coisas ruins, deliberadamente estão pegando pessoas já psicologicamente desequilibradas e lhes vendendo frases prontas e mentiras… acho que nem Gordon Gekko seria tão imoral assim.
Metaforicamente falando, estamos em um mundo “Nieztcheano” um tipo de Loop de memórias dolorosas, bater a depressão é, sem sombra de dúvidas, uma das maiores façanhas possíveis no mundo contemporâneo, e não parece ser natural essa epidemia, as pessoas fazem questão de mostrar o quão inferior alguém é devido aos mais variados motivos, sem dúvidas isso encheu o bolso das editoras e dos terapeutas. Mas também fez muitas vítimas, as alarmantes taxas de suicídio demonstram que os Países, as empresas e as famílias ainda não descobriram um remédio efetivo.
A Explicação financeira não me parece adequada, visto que os países com a mais elevada taxa são desenvolvidos, onde normalmente a vida é mais fácil e mais feliz. A explicação religiosa que já abordei acima também não parece oferecer o quadro completo. Existe também a explicação social trabalhada por autores como Roger Scruton e Zygmunt Bauman, Scruton observa que: “ O Fantasma imperfeito da igualdade” assombra a mente de todos, destruindo a obediência, a honra, e a capacidade de comando, de modo que as pessoas, cada vez menos capazes de encontrar conforto na ordem social, são confinadas a solidão dos seus corações” (SCRUTON, 2019. P.65), o mundo contemporâneo enfraqueceu todos os laços que tornavam uma comunidade estável, quantas vezes você perdeu as pessoas que mais amava pela distância geográfica ? Ou pior, quantas vezes mesmo vivendo na mesma cidade você vê seus amigos e familiares por semana? Os futuristas prezam a tecnologia que permite esse contato virtual, enquanto os mais céticos lamentam a perda de contato humano.
Bauman na obra Amor líquido faz uma crítica ferrenha ao pós-modernismo apontando que as relações amorosas deixaram de ser sobre união ou sentimento e sim viraram um mero acúmulo de experiências, na prática isso matou o romantismo (tanto como movimento literário quanto como atitude) que passou a ser visto como algo retrógrado e ultrapassado.
Todos esses elementos podem contribuir para a epidemia de suicídios e depressões da modernidade, a questão da depressão é ainda mais complexa, pois é de mais difícil percepção, as vezes tudo parece bem mas na realidade a pessoa está implorando por ajuda, em um mundo que demonstrar sentimentos é sinônimo de fraqueza moral as pessoas tendem a segurar ao máximo seus problemas e inseguranças para si mesmas e quando isso se torna impossível o problema aparece com uma intensidade muito maior.
O que nos leva ao parágrafo inicial, algumas pessoas simplesmente não nasceram para serem felizes, não tiveram sorte o suficiente, outras é o contrário parece que as circunstâncias da vida sempre as beneficiam, e nessa loteria da vida não existe uma resposta única ou uma saída fácil, o que é importante é que nossos filósofos, teólogos e psicólogos continuem buscando interpretações e soluções… Especialmente para gente como eu, acostumada a ter uma resposta e uma saída para tudo, nada é mais assustador do que a incerteza do mundo moderno.