A contemporaneidade é fruto de inúmeros estudos nas mais diferentes áreas, filosófos, sociológos e antropólogos focam muito de suas energias em estudos sobre as alterações econômicas, políticas e sociais que aparecem vez ou outra, uma das áreas que passou um pouco esquecida pelos sociólogos e suas pesquisas sobre o relacionamento humano é a amizade.
Um dos sentimentos mais nobres já registrados na humanidade, a amizade está presente em várias representações culturais, na literatura, no teatro, na música e no cinema. Dom Quixote e Sancho Pança no clássico de Cervantes, Dominic Torreto e Brian O´Conner na franquia Velozes e Furiosos, Michael Corleone e Tom Hagen no magistral Poderoso Chefão e a minha favorita, a amizade entre Batman e Superman nos quadrinhos da DC Comics.
Inúmeros autores já falaram a respeito no passado na filosofia, Aristóteles tem frases icônicas a respeito, Cícero elaborou talvez a melhor frase já cunhada sobre o tema e Roger Scruton dedicou capítulos de livros de filosofia ao tópico. Porém na filosofia atual o tema parece ter desaparecido. Um estudo recente conduzido nos Estados Unidos pelo Think Tank American Enterprise Institute chegou a conclusão que os americanos atualmente têm o menor número de amigos na história. Tal constatação leva a algumas reflexões interessantes, ano passado escrevi no site sobre uma provável epidemia suicida nos jovens. Leia mais em: https://hermeneuticapolitica.com.br/a-epidemia-silenciosa/. A descoberta do centro de pesquisa de Washington corrobora a afirmação no sentido de se notar também uma epidemia de solidão na sociedade americana.
Antes de examinar com mais detalhes ás causas e efeitos relacionados é necessário verificar que não se trata de fenômeno isolado que talvez derive de características próprias e únicas da sociedade e cultura americana, o fenômeno é universal, e pesquisas indicam que no Brasil tem ocorrido o mesmo segundo o IBGE.
Os números da pesquisa americana são interessantes, em 1990 apenas 3% diziam não possuir nenhum amigo próximo, trinta anos depois esse número quadruplicou, apesar do senso comum nos dizer que hoje é muito mais fácil de manter relações devido a novas modalidades tecnológicas a conclusão que se chega é a oposta, cada vez mais ficamos mais solitários, de início imaginei que às famosas clivagens de Rokkan-Lipset imortalizadas pela ciência política fosse uma explicação plausível, essas clivagens apontam que o modo de vida na capital e no interior é oposto, entretanto a distribuição estatística da pesquisa não apresenta diferença significativa.
Quais são os motivos para essa queda brusca na quantidade e qualidade das amizades ? Cheguei a algumas hipóteses que explicam, quatro no geral, mas antes disso precisamos definir o que significa o conceito de amizade. Aqui irei partir do conceito definido por Aristóteles em Ética a Nicômaco. A concepção de amizade em Aristóteles é fundamental para a Ética ( relacionamento com os demais ) e a Política ( relacionamento com a comunidade ), e também para a Eudaimonia, termo frequentemente traduzido como felicidade. Segundo o filósofo grego “ A amizade é uma alma que mora em dois corpos, um coração que palpita em duas almas. “
Aristóteles também divide ás amizades em três tipos: Por prazer, Por interesse e Verdadeira. Não é o objetivo do artigo um estudo aprofundado sobre os três tipos, apenas apresentar ás diferenças presentes de forma breve. Amizade por prazer é o tipo mais fraco das três, é frequentemente vista na “ vida social “ da humanidade, baladas, bebidas, viagens…
A amizade por interesse é fundada no princípio da utilidade, nas vantagens de manter a relação, se a balança se alterar e tiver mais desvantagens a amizade acaba junto. É muito comum na Política esse tipo de amizade, ambos os tipos ( prazer e utilidade ) não se valoriza a amizade pelo que ela é por si só, mas por aquilo que ela pode lhe proporcionar. Na amizade verdadeira existe valor intrínseco na relação, esse tipo de amizade é o mais forte e duradouro, pois ele não depende do prazer ou do interesse mas apenas de um desejo honesto de ver o amigo bem.
As recentes pesquisas mostram que todos os tipos de amizade vem diminuindo ao longo do tempo. Agora que entendemos o que significa amizade e quais os tipos existentes podemos analisar melhor ás hipóteses que irei apresentar a seguir.
- Negócios
- Tecnologia
- Mobilidade
Os negócios são um problema porque todos querem ser bem sucedidos e ganhar dinheiro, porém o preço a ser pago por isso hoje em dia transforma ás pessoas em Workholics, a onipresença do Welfare State sempre tributando todos os seus ganhos e expandindo programas assistencialistas faz com que você precise trabalhar o dobro ou o triplo para manter o seu padrão de vida e na vida pelo trabalho a amizade é um luxo que não dá para ter porque sempre existe outra reunião para participar e outro imposto para pagar. Claro que a esquerda culpa o capitalismo e o mercado financeiro por isso, porque enxergar de maneira adequada o problema lhe obrigará a enxergar que Marx sempre esteve errado e que a Política é quem dita os rumos da Economia e não o contrário.
A Tecnologia acaba por oferecer uma ilusão á respeito, com ás redes sociais e a revolução nos meios de comunicação somos levados a ter mais momentos de contato virtual porém com menos significado e importância pois se torna algo corriqueiro e banal do que um contato realmente pessoal. Claro que a tecnologia não deve ser vista como um inimigo por completo, pois ela realmente facilita o contato, o problema é quando ela se torna um substituto e não um suplemento para a presença física do outro. A pirâmide de Maslow já aponta, todos precisam de comida, água, conforto e contato com outros seres humanos.
Em terceiro temos a tão falada mobilidade gerada pela globalização, o motivo é óbvio, é extremamente difícil construir amizades reais e duradouras quando ás pessoas se mudam de cidade, estado ou país de maneira tão fácil. Pense por um minuto quantas pessoas você conhece que se mudaram de país nos últimos 3 ou 4 anos. Somos a geração do Adeus.
Porém existem consequências a esse modo “ nômade “ de vida, amizades significativas não acontecem da noite para o dia, é preciso anos, talvez décadas de atenção e troca genuína. Quem me conhece pessoalmente sabe que sou um grande crítico do padrão de comportamento da minha geração, ao invés de querer possuir ás coisas, minha geração se foca em experiências. Um bom amigo é algo a se carregar para o restante da vida, viagens, festivais ou morar no exterior não são.
Roger Scruton traz outro ponto particularmente importante, para ás amizades terem valor é preciso que elas tenham profundidade e escapem das futilidades, “ uma conversação de virtude indica o vínculo entre ás pessoas que admiram e valorizam o que encontram umas nas outras “ SCRUTON, 2014,p 197. É muito divertido falar sobre ás coisas triviais como futebol, vídeo games e outras coisas, porém também é necessário que se faça presente a possibilidade de conversas sobre coisas mais sérias, objetivos, sonhos e principalmente medos.
O que mais espanta nessa constatação sobre o fim da amizade é que como demonstrado anteriormente os exemplos existentes seja na cultura erudita ou popular são vários e estão vivos no subconsciente coletivo da sociedade, mas ainda assim na prática os números não param de oscilar para baixo. É possível traçar paralelos, geralmente ás amizades somem após o colégio e são substituídas por amigos da faculdade, depois pelos amigos do trabalho e em último grau por demandas familiares. Portanto amizades que sobreviveram a todo esse ciclo de rupturas têm muito mais chances de se manterem estáveis ao longo do tempo. Elas representam o tipo de amizade de maior valor demonstrado por Aristóteles.
O que a sociedade ainda não percebeu é que os danos relacionados a essa vida sem amigos são severos e variados com grande impacto na saúde física e mental.
Bibliografia
Livros
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Cambuci. Edipro. 2018
CÍCERO, Marco Túlio. Da Amizade. São Paulo. WMF. 2012
SCRUTON, Roger. Como ser um Conservador. Rio de Janeiro. Record. 2014
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