Quando pensamos sobre eleições municipais, é natural que nossos olhos se virem para as capitais e principalmente para São Paulo, a maior metrópole brasileira funciona como um espelho do restante do país, o que acontece em São Paulo tende a se espalhar, principalmente para as outras capitais. Dentro das corridas eleitorais em nossas capitais a de São Paulo se destaca pela imprevisibilidade de qual será o segundo turno. O cenário consolidado que trazia o prefeito Ricardo Nunes (MDB) e Guilherme Boulos (PSOL) em uma batalha no segundo turno agora está em xeque devido a popularidade demonstrada pelo polêmico empresário Pablo Marçal (PRTB).
As duas principais forças políticas do país tiveram um triplex alugado em suas cabeças pelo ex-coach. Em artigos e comentários anteriores para a mídia ressaltei que a dificuldade maior do petismo em conter o crescimento bolsonarista era que pela primeira vez o PT encontrou um adversário capaz de igualar sua capacidade de jogar tão sujo e lutar na lama. Acostumado com uma oposição tradicional historicamente feita pelo PSDB os petistas se viram em maus lençóis ao enfrentar o novo modelo de oposição iniciado pelo bolsonarismo e amplificado por Marçal. Boulos e Datena (PSDB) quase foram para as vias de fato caindo nas provocações e armadilhas mentais de Marçal, Tabata Amaral (PSB) criada na política dentro dos centros universitários com oponentes que possuiam o mínimo de decoro também não tinha respostas para os ataques.
Para o bolsonarismo Marçal representa uma ameaça ainda maior, em poucas semanas o ex-coach gerou o maior racha da história do movimento em torno de Jair Bolsonaro (PL) ao ponto de segundo ás últimas pesquisas do Data Folha e da Paraná Pesquisas forçar um empate triplo pela prefeitura e pior do que isso, ameaçar a liderança de Bolsonaro sobre a direita nacional. Mas o que pouca gente está atenta é em entender as origens do fenômeno representado por Pablo Marçal e é sobre isso que esse artigo irá avaliar.
Para seguir essa análise é indispensável buscar a obra do sociólogo alemão Max Weber (1864-1920) por dois motivos, o primeiro é para entender de maneira mais aprofundada o conceito de dominação e suas tipologias. Segundo Weber o conceito de Poder significa “Toda probabilidade de impor a própria vontade numa relação social, mesmo contra resistências, seja qual for o fundamento dessa probabilidade”(WEBER, 2009, p 33). Enquanto a dominação é o que confere autoridade ao poder, ou nas palavras de Weber “A probabilidade de encontrar obediência para ordens específicas (ou todas) dentro de determinado grupo de pessoas” (WEBER, 2009, p 139). Em outras palavras existe uma relação de emissor e receptor entre o Poder e a Dominação, enquanto o primeiro é um exercício de vontade, o segundo representa a aceitação desse exercício.
Dentro das análises de Weber sobre os tipos de dominação se destacam três tipologias, a dominação legal se refere basicamente ao poder do Estado enquanto detentor do monopólio da violência, Weber é uma espécie de herdeiro da concepção hobbesiana no que diz respeito a natureza da ordem e manutenção de coesão social. Portanto considera que o Estado existe para evitar que indíviduos exerçam a violência por si mesmos. O império das leis e não dos homens e o uso da forças armadas representam essa dominação, mas para que ela seja válida na visão de Weber ela deve surgir á partir de um processo legal e correto de sanções e aplicações.
O segundo tipo de dominação é o tradicional, esse processo deriva de um respeito as tradições, esse modelo está mais ligado a filosofia moral e a sabedoria inata das tradições, afinal se elas duraram por tanto tempo algum motivo existe, e as normas morais reforçam o modelo.
O terceiro tipo é chamado de dominação carismática, esse modelo diz respeito a capacidade de mobilização das massas e comando sobre ás demais pessoas que o líder carismático possui, frequentemente existe uma relação de devoção ao líder, não apenas por características pessoais de liderança mas frequentemente também por uma crença inabalável que o líder seria infalível e que ele traria ás mudanças que seus seguidores clamam, o que coloca esse tipo de dominação mais próximo do misticismo e da religião do que da filosofia moral ou jurídica. Reconheceram o Bolsonarismo? É aqui que Marçal também está situado.
Outro elemento importante do poder exercido por Marçal pode ser encontrado nas pesquisas do famoso sociólogo da religião britânico David Voas. Em influente artigo de 2011. “ The Emergence of Conspirituality” Voas delineou ás bases do que viria a ser a hoje chamada pelo jornalista Rodrigo Constantino de DRP (Direita Radical Populista). O artigo de Voas chama a atenção para uma fusão que começou a ocorrer no imaginário coletivo, as concepções típicas do esoterismo New Age dos anos 60 e de Woodstock com as teorias conspiratórias sobre a política global. A princípio esses polos não deveriam interagir, uma vez que o primeiro surge de um movimento marcadamente da esquerda estudantil que desejava romper com o status-quo conservador do pós-guerra e o mecanicismo do capitalismo moderno valorizando a espiritualidade, o pensamento positivo, a autoconsciência, e uma abordagem holística do mundo em contraste ao individualismo liberal, ao passo que o segundo sempre teve certa popularidade com autores mais reacionários e que curiosamente começaram a ganhar seguidores para combater o que a New Age tinha como valores e princípios lá nos anos 60.
Marçal é um produto disso assim como Bolsonaro em relação a segunda parte, porém o Coach percebeu algo que Bolsonaro não conseguiu. Embora tenha tido um grande sucesso em espalhar um alto grau de desconfiança junto a sociedade em relação ao sistema político brasileiro (o que vamos combinar não é lá muito difícil quando se tem o STF cometendo ilegalidades e jogando no lixo valores fundamentais da democracia).
Bolsonaro parou por aí pois tentava vender ao eleitorado algo que não lhe é próprio, tentava importar uma ética de trabalho típica dos países protestantes em que o trabalho é realmente recompensado. Mas isso é alienígena ao Brasil, e por mais que seja possível isso ser implementado em uma sociedade, é um trabalho de gerações. Quem leu o brilhante retrato do Brasil do antropólogo Roberto da Matta em “Carnavais, Malandros e Heróis” sabe que uma das causas do sub-desenvolvimento brasileiro é justamente a mentalidade do brasileiro de buscar soluções milagrosas para problemas complexos. Marçal compreendeu isso melhor que Bolsonaro. Seu discurso de que basta pensamento positivo e sonhar que tudo se tornará realidade é cativante num país sem perspectivas, com um governo que mais cedo ou mais tarde irá causar uma recessão, cujas liberdades básicas vem sendo atacadas pela corte que deveria protegê-las. Mas também é de forma cristalina uma negação da existência ontológica de uma realidade externa a percepção do sujeito.
Recorrendo mais uma vez a Max Weber. É bom Bolsonaro ficar alerta, pois a dominação carismática é a mais instável, em um estalar de dedos o capitão pode acabar vendo o grosso da sua militância agora ser a militância de Marçal o que deixará Bolsonaro extremamente vulnerável para seus inimigos em brasília tanto no STF quanto no governo Lula. A forma que Marçal vem conduzindo sua campanha, a forma como se comunica e o que fala basicamente empurra Bolsonaro para parte do sistema, e pode inclusive frustrar os planos de Tarcísio de Freitas (Republicanos), até então a melhor opção da direita para retomar a presidência, em especial de uma direita mais moderada que acabou infeliz com os rumos da presidência de Bolsonaro. Não é por acaso que Tarcísio vem atacando de forma constante Marçal e fazendo campanha de maneira firme por Ricardo Nunes, o governador viu alguém que pode tomar o espólio de Bolsonaro antes do capitão oficialmente passar o bastão para o governador de São Paulo.
Claro que não condeno um voto em Marçal contra Boulos no segundo turno, nada pode ser pior que um invasor de propriedade privada na maior cidade do país. Mas Marçal é uma aposta arriscada tanto pela imprevisibilidade quanto talvez por desarticular bem rápido o maior movimento de direita do país. Como bom conservador na linha de Russell Kirk e Roger Scruton opto pela prudência e torço por Ricardo Nunes, principalmente por ele não ser uma ameaça em 2026.
Referências Bibliográficas
MATTA, Roberto da, Carnavais, Malandros e Heróis: Para uma sociologia do povo brasileiro. Rio de Janeiro, Editora Rocco, 1997.
VOAS, David;WARD, Charlotte. The Emergence of Conspirituality, Journal of Contemporary Religion, Pp103-121, 2011.
WEBER, Max. Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. 4. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2009.