Escrevo este artigo após observar um vídeo no Instagram da escritora e mestre em História, Ana Lígia Lira, em que nos são mostradas diversas casas da primeira metade do século XX, ricamente ornamentadas e com fachadas bem enfeitadas. Nas imagens seguintes, vemos uma série de construções contemporâneas, caracterizadas por seu concreto frio e paisagens mortas, um conjunto que não vai além do funcional e do imediato.
Obviamente, presenciamos um processo de decadência de uma arte que nos legou as belíssimas catedrais góticas, quando o homem almejava uma beleza que transcendia a realidade material e buscava reproduzi-la em formas humanas. Trata-se da decadência da arte arquitetônica.
Essa decadência reflete um processo de desconstrução do Belo como fundamento primordial da arte. A contemporaneidade, edificada sobre os pilares do secularismo e do materialismo, nega a existência da tríade transcendental — que vai de Platão a Hans-Urs von Balthasar: verum, bonum, pulchrum —, rejeitando especialmente a última, considerada por Jacques Maritain como “o esplendor de todos os transcendentais reunidos”.
As artes, anteriores ao período de domínio do secularismo, tinham como objetivo “omnis visibilis pulchritudo invisibilis pulchritudinis imago est”, ou seja, a reprodução, na imanência (visível), da beleza da transcendência (invisível). Casas, locais de governança e ambientes comerciais eram todos construídos sob essa concepção metafísica da arte arquitetônica.
Na era da sociedade revolucionária e dessacralizada, voltado para a lógica da acumulação de riqueza, da funcionalidade, da velocidade, da atomização, da racionalização e do materialismo, o Belo é considerado retrógrado, antimoderno e pertencente a um passado considerado pouco técnico e voltado para realidades incorpóreas, tidas como inexistentes e supersticiosas pelo mundo moderno. Trata-se da “gaiola de ferro” de Weber, na qual a racionalização e a burocratização excessivas sufocam o que é Belo, Bom e transcendente. O que interessa agora são o funcional e o rápido, evidenciando a morte da alma.
A verdade em todo esse contexto é que as construções arquitetônicas modernas, materialistas e dessacralizantes, refletem uma alma morta ou decadente, um homem que caiu no abismo moral e que não concebe nada além da própria mediocridade da vida moderna, voltada unicamente ao trabalho e ao consumo. Pior ainda, esse desprezo pelo Belo é evidente nas elites; justamente aqueles que possuem melhores condições para financiar a construção de uma morada bela optam pelo Feio e pelo Terrível, expondo claramente a alma morta de seus construtores. Tudo isso reafirma minha tese de que a elite capitalista, inclusive a nobreza decadente do período mercantil, é decadente se comparada às elites medievais, moldadas em valores morais católicos, em códigos de cavalaria, nas sete virtudes e em uma vida idílica. A legitimidade de um nobre medieval, via de regra, provinha de atos de virtude; as elites modernas se legitimam pela capacidade de dominar as forças produtivas. Não há mais valores que transcendam a realidade material como fundamentos ou alicerces que mantenham o homem da elite em sua posição; é a técnica e a matéria que legitimam. Tudo colabora para um homem desprovido de significado, com uma alma morta.
O advento da Revolução Industrial e a urbanização acelerada fizeram surgir demandas que priorizavam custo e eficiência. Edifícios tornaram-se unidades de produção em série, muitas vezes relegando o Belo a forma de vida antiga. O movimento moderno na arquitetura, com figuras como Le Corbusier e Mies van der Rohe, trouxe a ideia do “menos é mais”, onde a funcionalidade ditava o design. Os comunistas também colaboraram com essa degradação. Seguindo a visão materialista da história, o marxismo tende a abordar a arquitetura como um reflexo das relações sociais e de produção. Nesse sentido, qualquer estética arquitetônica que não sirva para avançar os objetivos da luta de classes pode ser vista como secundária ou até mesmo perniciosa. O Brutalismo, um estilo arquitetônico de origem socialista que ganhou destaque na segunda metade do século XX, exemplifica a influência do marxismo em termos de desvalorização do Belo. Caracterizado pelo uso de formas austeras e materiais brutos, como o concreto aparente, o Brutalismo foi influenciado por uma ideologia que buscava a funcionalidade e uma certa rejeição da ornamentação, que era vista como burguesa e elitista.
Vivemos na Idade das Trevas. E ainda ousam afirmar que a Idade Média das catedrais era uma Idade de obscurantismo.
A inversão de valores que caracteriza nossa época também se reflete na forma como a sociedade encara a preservação do patrimônio histórico e arquitetônico. Em busca de modernização a qualquer custo, esquecemos que as construções históricas não são apenas testemunhas silenciosas do passado, mas sim elementos ativos na construção da identidade cultural de um povo. Infelizmente, no ritmo frenético de “progresso”, muitas dessas estruturas são demolidas ou negligenciadas, perdendo-se não apenas a beleza artística, mas também o simbolismo e a memória coletiva que carregavam. Esse fenômeno evidencia o menosprezo pela História e pela Cultura, componentes fundamentais que, em outras épocas, eram valorizados como alicerces da civilização.
Essa desconexão com o passado e a supervalorização do presente efêmero e materialista nos leva a questionar sobre o tipo de legado que estamos deixando para as futuras gerações. A questão é: que tipo de cultura, de civilização, estamos construindo quando optamos pelo Feio, pelo funcionalista, pelo materialmente eficiente em detrimento do eternamente Belo? Somos então forçados a confrontar a possibilidade de que nossa era será lembrada não por sua contribuição à elevação da alma humana, mas por sua eficiência em esmagá-la. Tal como o conceito de “desencantamento do mundo” proposto por Max Weber, nosso tempo pode estar fadado a ser uma era de desencantamento da alma, onde o materialismo, o imediatismo e a eficiência tornaram-se nossos novos deuses, deuses que exigem o sacrifício do que é mais profundamente humano.
Publicação da Ana Lígia Lira: