Recentemente, li o artigo escrito por Márcio Chaer, diretor da revista “Consultor Jurídico” na qual ele trata do legado da Operação Lava Jato dez anos depois. Seu artigo já começa infeliz desde o título (10 anos depois, veja quanto e quem ganhou com o esquema ‘lava jato’), na qual sugere que a operação que apurou o maior esquema de corrupção da história do país até então, não passava de um esquema, cujo único objetivo seria beneficiar os principais agentes que fizeram parte da operação.
Em um primeiro momento, o autor do artigo aduz que há um grupo internacional criado pelas sete maiores economias do mundo, o Gafi (Grupo de Ação Financeira Internacional), que foi responsável pelo alicerçamento de movimentos como os da “operação lava jato”. Acrescenta ainda que, induzido por esse grupo, o governo brasileiro em 2003, instalou o que se batizou de Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (Enccla) – uma rede de órgãos e entidades públicas brasileiras com objetivo de atuar de forma coordenada no combate à corrupção e à lavagem de dinheiro. Através do Enccla nasceram as varas especializadas em crimes contra o sistema financeiro e lavagem de dinheiro, da qual atuaram figuras como Sérgio Moro e Marcelo Bretas. O autor argumenta ainda, que apesar do Enccla estar ligado ao Ministério da Justiça, o Poder Executivo perdeu o controle deste fórum. Por fim, argumenta também que o Gafi e outros órgãos como a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) existem para impedir que as economias menores concorram de igual para igual frente às maiores economias.
É sempre bom lembrar que o Gafi surge em um contexto histórico no final dos anos 80, onde há o crescimento da preocupação global sobre os vários mecanismos de lavagem de dinheiro. Isso porque, a prática desse delito possibilita e fomenta a continuação de outras atividades ilícitas como a exemplo do tráfico de drogas e armas, que naquele contexto, havia se intensificado de uma maneira nunca antes vista na história. O objetivo do Gafi é a proteção do sistema financeiro e da economia em geral contra ameaças de lavagem de dinheiro e financiamento do terrorismo e da proliferação das armas de destruição em massa, através do desenvolvimento e da promoção de padrões internacionais de prevenção à esses crimes.
Para cumprir seus objetivos, o Gafi publica suas 40 recomendações desde 1990. Elas abordam uma variedade de tópicos, incluindo políticas e procedimentos para instituições financeiras, cooperação internacional, e implementação de legislação adequada. Essas recomendações além de serem atualizadas regularmente, foram ratificadas por todos os países-membros, incluindo o Brasil, que faz parte desde 1999. Nesse contexto, é importante ressaltar que o Brasil, já passou por algumas avaliações do Gafi desde o ano 2000, na qual em sua última avaliação, a Organização fez um balanceamento positivo sobre o sistema de prevenção à lavagem de dinheiro do país, com algumas ressalvas ligadas a cooperação e a coordenação entre certas autoridades a fim de melhorar a repressão à lavagem de dinheiro. Na mesma esteira, a Organização possui um enorme prestígio, da qual uma avaliação positiva pode atrair investimentos estrangeiros que impulsionam a economia do país, enquanto uma má avaliação trás consequências como uma má reputação diplomática e política, o que encarece fluxos financeiros e diminui os aportes de recursos.
Assim, o argumento inicial apresentado por Marcelo Chaer, sugerindo que o Gafi seria uma conspiração para frear o progresso de economias menores, parece ser meramente uma forma de desviar o foco do real problema, que são as falhas do sistema brasileiro no combate contra a lavagem de dinheiro, culpando assim, uma organização que busca promover transparência na luta contra esse crime. Ademais, é importante ressaltar que graças aos esforços dessa organização internacional, com também a cooperação dos países-membros, foi possível o bloqueio de recursos materiais e financeiros de terroristas, revelando assim, que o objetivo dessa organização jamais foi prejudicar alguma economia, como alega o autor.
A respeito do Enccla, esse trata de uma rede de articulação que conta com quase 90 instituições públicas que pertencem aos três Poderes e o Ministério Público, abrangendo também as esferas federal, estadual e, em alguns casos, até mesmo municipal – e entidades. Não há de se falar aqui em um controle dessa rede pelo Executivo, até pelo fato de terem órgãos de outros poderes envolvidos, mas também o total controle pelo Executivo pode representar um risco para a eficácia e independência dessa estratégia, onde se pode destacar alguns pontos onde: essa divisão faz necessária para garantir a separação de poderes; evitar que o Executivo tome decisões unilaterais sem o devido escrutínio e equilíbrio dos outros poderes, o que pode levar a abusos e corrupção; e promover a transparência e a diversidade de perspectivas.
Chaer também parece estranhar o fato da Petrobras ter feito acordos com o Departamento de Justiça do Estados Unidos e a Comissão de Valores Mobiliários do Estados Unidos para encerrar as investigações de supostos esquemas de corrupção, além de claro, também ter pagar cerca de US$ 3 bilhões para acionistas minoritários para encerrar uma ação coletiva movida pelos investidores que foram prejudicados pelos escândalos de corrupção que foram revelados pela “lava jato”. Também menciona um acordo da Petrobras feito com o Ministério Público da Suíça para encerrar também investigações sobre suspeitas de corrupção.
O autor omite alguns detalhes relevantes sobre o tema em questão. É importante observar que a Petrobras possui ações listadas na Bolsa de Nova York, o que naturalmente desperta o interesse das autoridades dos Estados Unidos em investigar possíveis violações das normas financeiras locais, decorrentes das provas de corrupção trazidas à tona pela Operação Lava Jato. Além disso, é pertinente destacar que, dos valores arrecadados com a multa, apenas 20% foram destinados às autoridades norte-americanas, enquanto os outros 80% foram alocados em programas sociais e educacionais no Brasil. Adicionalmente, os escândalos de corrupção afetaram negativamente milhares de acionistas que, legitimamente, buscavam ressarcimento pelos prejuízos causados pela empresa.
A análise superficial dos eventos pode contribuir para a perpetuação de uma narrativa tendenciosa. É crucial ressaltar que os acordos estabelecidos entre a Petrobras e o Ministério Público da Suíça não implicaram necessariamente no encerramento integral das investigações relacionadas à corrupção envolvendo a empresa. Esses acordos são direcionados a aspectos específicos das investigações e inserem-se em um contexto de cooperação internacional mais abrangente.
O autor também reforça o discurso do Partido dos Trabalhadores (PT) em que a “lava jato” foi responsável por causar prejuízos financeiros como demissões, perda de prestígio das empresas envolvidas e bilhões de reais em acordos de leniência sem critérios. Aduz ainda sobre último, que os crimes invocados jamais foram comprovados e que desses, resultaram multas infundadas.
A minimização dos efeitos decorrentes da corrupção sistêmica exposta pela Operação Lava Jato, mediante a atribuição de responsabilidade exclusiva às investigações pelas consequências dos atos ilícitos das empresas envolvidas, evidencia uma distorção de valores no contexto nacional. É inegável que a corrupção desencadeou um impacto devastador na infraestrutura do país, acarretando prejuízos não apenas às empresas diretamente implicadas, mas também à economia como um todo. A negação da comprovação de crimes perpetrados durante esse período é uma negação da realidade, considerando-se que mais de 20 bilhões de reais foram recuperados como resultado das investigações. Os recursos desviados por práticas corruptas representam, em última instância, recursos que poderiam estar sendo direcionados para áreas cruciais como educação, saúde, segurança pública, infraestrutura e desenvolvimento social.
Ademais, Chaer parece criar uma teoria da conspiração, na qual uma ONG dirigida por Bruno Brandão, a Transparência Internacional,estaria atuando em prol dos interesses escusos da Gafi e da OCDE para manter as “multas infundadas”. Argumenta que Bruno estaria pressionando o STF para manter as multas, voltando a opinião pública contra o órgão, ao passo que a opinião pública estaria a favor da “lava jato”.
Insinuar que uma organização não governamental de renome internacional, com uma extensa trajetória de combate à corrupção em âmbito global, carece de legitimidade é uma análise superficial e desprovida de fundamentos. Além disso, censurar os esforços da Transparência Internacional em exercer pressão sobre o Supremo Tribunal Federal representa uma tentativa de desacreditar o papel vital das instituições independentes na promoção da transparência e do império da lei.
Ainda sobre Bruno Brandão, Chaer o acusa de fraudar pesquisas: a primeira que aponta que a população aprova a lava jato e desaprova o STF e a segunda que aponta que o Brasil caminha para se tornar um dos países mais corruptos do mundo. Ele fundamenta que a primeira seria inválida pois menos de 3% dos brasileiros consomem conteúdo jornalístico e não sabem nem o que é o STF ou a operação “lava jato”. Já na segunda pesquisa, argumenta que não se informa quem foi ouvido, quantos foram pesquisados, quando e nem como.
O autor não traz no entanto alguma fonte que comprove esse número apontado por ele sobre a quantidade de brasileiros que consomem conteúdo jornalístico, mas ainda que estivesse certo esse dado, desconsiderar a validade de uma pesquisa com base no percentual de consumo de conteúdo jornalístico pela população é simplista e ignora o fato de que há várias fontes de informação, além dos veículos tradicionais de mídia, que podem influenciar a percepção pública sobre temas como a Operação Lava Jato e o Supremo Tribunal Federal.
A segunda pesquisa mencionada refere-se ao Índice de Percepção da Corrupção (IPC), uma avaliação realizada anualmente desde 1995, que compara o nível de corrupção entre os países. Este índice é composto por um conjunto de 13 fontes de dados de 12 instituições independentes e especializadas em governança e análise de ambientes de negócios. O IPC utiliza critérios objetivos, como desvio de recursos públicos, transparência pública, efetividade na punição dos envolvidos em corrupção e ausência de proteção legal para os denunciantes. No caso do Brasil, a pontuação baixa no combate à corrupção reflete a interferência do governo em órgãos de controle para sua própria proteção, a disseminação de notícias falsas, a redução da transparência e a pouca efetividade nas punições. Esses fatores contribuem para a percepção negativa em relação à corrupção no país, evidenciando a necessidade de medidas mais robustas e eficazes para combatê-la e promover a integridade institucional.
Em resumo, o artigo de Márcio Chaer apresenta uma análise enviesada e simplista sobre o legado da Operação Lava Jato, ao atribuir exclusivamente a ela as consequências dos atos ilícitos revelados. Ao desconsiderar o papel fundamental de organizações internacionais como o Gafi e a Transparência Internacional na promoção da transparência e combate à corrupção, o autor distorce a realidade dos fatos. Além disso, ao questionar a validade de pesquisas e acusações sem fundamentos sólidos, Chaer compromete a integridade de seu argumento. Quanto ao título de seu artigo, parece ser apenas uma frase escandalosa para chamar atenção e atrair o clique, pois não é tratado em nenhum momento como os principais agentes da Operação Lava Jato se beneficiaram de algum modo dela. Em vez de alimentar teorias da conspiração, é essencial reconhecer os avanços conquistados no combate à corrupção e fortalecer as instituições e mecanismos de controle para garantir a integridade e a justiça em nosso país.
A Operação Lava Jato foi uma força tarefa que realizou a maior investigação de corrupção da história do país, um esquema que movimentou bilhões de reais, envolvendo agentes públicos, políticos, empresários e doleiros. Foram realizadas 79 fases, na qual se deflagraram 533 denunciados, 1450 buscas e apreensões, 211 conduções coercitivas, 723 pedidos de cooperação internacional, 35 ações de improbidade administrativa, 138 acordos homologados no STF, 163 prisões temporárias, 132 prisões preventivas, 14 bilhões de reais em multas e 25 bilhões de reais recuperados. Não só isso, essa operação conseguiu colocar na cadeia, grandes empresários, políticos do mais alto escalão e até mesmo um Ex-Presidente da República, acontecimentos que até então, jamais vistos na história do país e que retratam como a corrupção aqui é sistemática e já afeta a todas instituições.
Infelizmente, por esforços conjuntos de alguns agentes políticos e da mais alta corte do Judiciário, a operação acabou se extinguindo em 2021, sendo um grande retrocesso no combate à corrupção no país. Nas palavras do Ex-Ministro do Supremo, Marco Aurélio Mello: “Houve um retrocesso brutal e não continuamos a caminhar visando tornar o Brasil o que se imagina do Brasil, o Brasil sonhado”.
É inegável que a Operação Lava Jato foi um marco no combate à corrupção no Brasil. O legado da Lava Jato transcende os processos judiciais e as prisões efetuadas. Ela inspirou a criação de legislações mais rígidas de combate à corrupção, incentivou a atuação de órgãos de controle e fiscalização e fortaleceu a cultura de accountability na sociedade brasileira. No entanto, o maior legado desses 10 anos de Operação Lava Jato é a importância do enfrentamento à corrupção como um imperativo para o fortalecimento da democracia e o desenvolvimento socioeconômico do país. Quem realmente ganhou nesses 10 anos de Operação, foi a população brasileira, ao ter um pouco de sua dignidade recuperada, que se deu, através da recuperação de bilhões de reais desviados que retornaram aos cofres públicos, e foram reinvestidos em áreas como saúde, educação e infraestrutura.
Artigo Base: https://www.conjur.com.br/2024-mar-06/10-anos-depois-veja-quanto-e-quem-ganhou-com-o-esquema-lava-jato/