Em minha infância, na década dos anos de 1990, quando eu tinha aproximadamente 3 a 5 anos de idade, lembro-me muito bem do costume que tinha em deitar-me na sala de estar com meu pai para ouvir em sua vitrola a música “o admirável gado novo” de Zé Ramalho. Naquela época nostálgica, não entendia muito bem a sua letra, devida minha inocência, porém, atualmente a compreendo muito bem, principalmente com a finalidade de criticar o atual cenário político brasileiro.
Acredito piamente que a letra da música é, contudo, uma crítica velada a situação em que o brasileiro se encontrava naquela época e, por incrível que pareça, ela pouco evoluiu.
No momento em que Zé Ramalho canta o verso “Vocês que fazem parte dessa massa, que passa dos projetos do futuro, é duro tanto ter que caminhar e dar muito mais do que receber”, pode-se interpretar uma crítica sobre a dura realidade do cidadão brasileiro comum e que, infelizmente, deve-se considera-la também para o cenário atual.
No que tange à cobrança de impostos, por exemplo, o país só perde para Cuba. O Brasil tem a segunda maior carga tributária da América Latina.
Segundo informações do portal Impostômetro, a carga tributária brasileira chegou a 32,4% do PIB (Produto Interno Bruto) em 2017, segundo dados da Receita Federal. Na comparação com 2016, a carga teve uma leve alta de aproximadamente 0,2 ponto percentual, puxada, principalmente, pelo aumento dos impostos sobre combustíveis.[1]
Além disso, o Brasil lidera no ranking do péssimo uso dos impostos. O Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação aponta que a destinação dos impostos arrecadados no país não chega à sociedade de maneira adequada. O presidente executivo do IBPT (Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação), João Eloi Olenike, explica que o Índice de Retorno de Bem Estar à Sociedade utiliza a carga tributária sobre o PIB do Brasil (15%) e o Índice de Desenvolvimento Humano (85%). “Em todas essas dez edições o nosso país ficou em último lugar, em 30º. O Brasil tem uma carga tributária equivalente aos países de maior arrecadação do mundo, mas o retorno é muito ruim — para não dizer péssimo. Ficamos abaixo de países da América do Sul, como Argentina e Uruguai.”[2]
Todavia, é duro pagar tantos impostos e não obter retorno satisfatório destes. É duro ter tanta corrupção, a ausência de transparência e insegurança jurídica. É duro ouvir todos os anos promessas de políticos em acabar com a corrupção, abrir a economia e reduzir os impostos para, no final, trai-las. É vergonhoso eu, como profissional da área jurídica, afirmar categoricamente que nosso país enfrenta atualmente uma das maiores crises institucionais e de insegurança jurídica da história da república. É muito triste tudo isso. Por isso, eu reafirmo as palavras de Zé Ramalho: “É duro tanto ter que caminhar e dar muito mais do que receber”.
Ainda sobre a insegurança jurídica, vivemos atualmente sobre o lema da impunidade, onde os cidadãos de bem são presos e amordaçados em suas residências e bandidos de colarinho branco são privilegiados.
Posso afirmar categoricamente que felizmente não foram esses princípios aprendidos com meus professores na universidade. Lembro-me bem das aulas em que eles me ensinaram sobre a importância da segurança jurídica, dos Direitos Fundamentais, das Garantias Individuais, do Estado Democrático de Direito, da lei, da ordem e da efetivação da Justiça.
Recentemente a operação Lava Jato, criada para apurar as denúncias de corrupção, que ditou os rumos do país nos últimos sete anos, com 79 fases, 1.450 mandados de busca e apreensão, 211 conduções coercitivas, 132 mandados de prisão preventiva e 163 de temporária”, sendo “colhidos materiais e provas que embasaram 130 denúncias contra 533 acusados, gerando 278 condenações (sendo 174 nomes únicos) chegando a um total de 2.611 anos de pena” e que era a esperança do povo brasileiro em obter uma maior segurança jurídica e um futuro melhor foi extinta em sua totalidade. [3]
Por conseguinte, o nosso protagonista principal da operação Lava Jato, o ex-presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva, teve o benefício de suas penas serem anuladas e, ainda declarar o Juiz que julgou a causa como suspeito e parcial. Que maravilha! É um presente de grego. Agora realmente temos um “Lula Livre”, mas, não podemos afirmar que Lula é inocente.
Como não bastasse, a advogada criminal Maíra Fernandes afirmou em entrevista à CNN Brasil que é possível que a defesa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva entre com um pedido de indenização ao Estado brasileiro. Não posso tecer críticas a minha colega de profissão, pois juridicamente as suas fundamentações se encontram corretas, mas, as críticas se direcionam tão somente à situação da insegurança jurídica nacional. É algo imoral e digno de pena alguns de nossos precedentes normativos.[4]
Ou seja, no Brasil o bandido comete crime, é preso, há todo um trabalho técnico e pericial para o levantamento de provas contundentes, essas provas posteriormente são apresentadas, mas, elas não valem nada, porque a polícia prende, porém, os juízes soltam, sob diversas justificativas. O bandido se transforma em uma lenda, um herói nacional. O princípio da imparcialidade jurisdicional está longe de ser aplicado nos tribunais em muitos casos e esse é um deles. Em outras palavras posso arguir resumidamente que o crime compensa.
Outro acontecimento importante, que inclusive é parte do título dessa análise é a CPI da pandemia, que investigará Jair Bolsonaro, o atual Presidente da República.
Conforme informações do portal Conjur, o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), determinou que o Senado adote as providências necessárias para a instalação da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para apurar eventuais omissões do governo federal no enfrentamento da pandemia da Covid-19.[5] Entretanto, essa decisão, ao meu ver, viola o princípio da autonomia dos poderes, elencados no art. 2º da Constituição, que afirma sobre os poderes devem ser harmônicos e independentes entre si. Neste sentido, o STF, que deveria ser o guardião da Constituição e da Segurança Jurídica, conforme o art. 102 da Constituição, retira a autonomia do Senado Federal.
É impossível afirmar que não existam fatos relevantes e cristalinos no Poder Executivo que não ensejam uma investigação através da abertura de uma CPI, em razão da negligência no combate à pandemia da COVID-19, os milhares de mortes e o colapso no Sistema de Saúde Pública do país. Todavia, o problema insurge quando o próprio guardião da Constituição e da Segurança Jurídica não cumpre os seus próprios dispositivos e princípios legais, como é o caso em concreto.
A nossa Suprema Corte tem violado há algum tempo a sua função de guardar a Constituição e a Segurança Jurídica, proferindo decisões que desfavorecem a vida, a economia, a ordem e o progresso, tanto que já escrevi sobre o assunto no ano de 2019, conforme o link abaixo:
A CPI é a sigla resumida para mencionar sobre Comissão Parlamentar de Inquérito. Ela é conduzida pelo poder legislativo e tem por objetivo ouvir depoimentos e tomar informações diretamente, a fim de investigar um ato ilegal praticado de grande relevância para a vida pública e para a ordem constitucional, legal, econômica ou social do País.
Nessa linha, é importante mencionar que a função do Poder legislativo é de criar novas leis (legislar), porém, ela possui a função atípica de fiscalizar e investigar a Administração Pública, principalmente o Poder Executivo e, para isso, existe o respectivo instrumento, no caso, a Comissão Parlamentar de Inquérito.
A CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) está prevista no art. 35 do Regimento da Câmara dos Deputados e art. 58 § 3ª da Constituição Federal, que determina que para sua abertura, será necessária a indicação dos membros para compor a CPI pelos próprios partidos, respeitando o critério de proporcionalidade, além do quórum de 1/3 (um terço) da casa legislativa (Câmara dos Deputados ou Senado Federal) e caso não haja esse número, a abertura poderá ser apreciada pelo plenário. Após a abertura da CPI, ela terá duração de 120 dias, podendo ser prorrogada por até mais 60 dias.
Observe o art. 35 do Regimento da Câmara dos Deputados e o art. 58 § 3º da Constituição Federal, que diz:
Art. 35 do Regimento da Câmara dos Deputados – A Câmara dos Deputados, a requerimento de um terço de seus membros, instituirá Comissão Parlamentar de Inquérito para apuração de fato determinado e por prazo certo, a qual terá poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, além de outros previstos em lei e neste Regimento.
Art. 58 § 3º da Constituição Federal – As comissões parlamentares de inquérito, que terão poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, além de outros previstos nos regimentos das respectivas Casas, serão criadas pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, em conjunto ou separadamente, mediante requerimento de um terço de seus membros, para a apuração de fato determinado e por prazo certo, sendo suas conclusões, se for o caso, encaminhadas ao Ministério Público, para que promova a responsabilidade civil ou criminal dos infratores.
Portanto, pela violação do princípio constitucional da autonomia dos poderes, essa CPI deveria ser considerada como inconstitucional, mas, estamos no Brasil, onde a Constituição é meramente uma folha de papel, assim como apregoava o grande Jurista Ferdinand de Lassale.
Neste sentido, os brasileiros diariamente precisam demonstrar coragem, como diz a outra parte do refrão da música mencionada acima, na parte em que diz “E ter que demonstrar sua coragem, a margem do que possa parecer, e ver que toda essa engrenagem, já sente a ferrugem lhe comer”.
Digo, pois, os brasileiros sentem a engrenagem da corrupção e a ferrugem dela torturando-os vivos. É como tivessem sendo vítimas de um grupo de assassinos psicopatas, que possui o prazer e o fetiche em torturar antes de matar, apenas para ver um espetáculo.
Assim é a relação do político brasileiro com o seu povo, que por sua vez, consiste em traições e promessas vazias.
Embora todos os fatos relatados acima, há uma parcela de cidadãos que estão felizes com a situação e continuam idolatrando o seu político de estimação como se fosse um “Deus”. Esse é o verdadeiro gado brasileiro e como missão precisamos guiar e educar os nossos.
O admirável gado novo é a nova geração de idólatras de políticos, que não têm ideia da importância da Ciência Política, da Teoria Geral do Estado e dos Direitos e Garantias Fundamentais que foram conquistados a preço de sangue. Essa nova geração apenas gosta de ganhar o pão e ter o seu circo de cada dia.
Para reflexão, deixarei a música Admirável Gado Novo, do nosso saudoso artista Zé Ramalho.
NOTAS
[1] Brasil só perde para Cuba na lista dos países que mais pagam impostos – Leia mais em: https://impostometro.com.br/Noticias/Interna?idNoticia=437 (acesso em abril de 2021).
[2] Brasil lidera ranking de mau uso de impostos – Leia mais em https://impostometro.com.br/Noticias/Interna?idNoticia=993 (Acesso em abril de 2021).
[3] Lava Jato sai de cena sob um Brasil em silêncio – Leia mais em: https://brasil.elpais.com/brasil/2021-02-04/lava-jato-sai-de-cena-sob-um-brasil-em-silencio.html (acesso em abril de 2021).
[4] Defesa de Lula pode pedir indenização ao Estado, avalia criminalista – Leia mais em: https://www.cnnbrasil.com.br/politica/2021/03/10/defesa-de-lula-pode-pedir-indenizacao-ao-estado-avalia-criminalista (acesso em abril de 2021).
[5] Barroso determina instalação da CPI da calamidade pública da Covid no Senado – Leia mais em: https://www.conjur.com.br/2021-abr-08/barroso-determina-instalacao-cpi-pandemia-senado (Acesso em abril de 2021).