Desde o início da pandemia do COVID-19 o presidente Bolsonaro vem perdendo capital político e popularidade como demonstram as pesquisas, ainda que mantenha controle sobre 1/3 do eleitorado está cada vez mais afastando a parcela neutra ou não ideológica o que torna mais difícil uma disputa a reeleição daquia a dois anos, construir pontes é bem mais fácil que reconstruir, pois não houve quebra de vínculo de confiança, a conduta dos aliados do presidente de difamarem todos que levantam a voz, mesmo para discordâncias mínimas torna essa reconstrução ainda mais complicada. Pedidos de impeachment se amontoaram no gabinete do presidente da câmara Rodrigo Maia, que não se enganem, apenas não abriu um deles por temer a reação dos militares a PEC 37/2019 que visa retirar o vice da função de presidente em caso de impedimento do titular. Desculpem o uso de vocabulário um pouco sujo mas não existe virgem no puteiro. Ninguém é santo em Brasília, todos tem seus próprios interesses, isso parece um tanto óbvio mas como grande parte da população ainda enxerga a política com verniz idealista se faz necessário. Devemos encarar o mundo e a política como ela é, não como gostaríamos que fosse. Essa aliás é a principal separação entre um cientista político e um filósofo político, um descreve o outro prescreve. Essa confusão que leva a várias projeções erradas seja de jornalistas, acadêmicos ou militantes.
Existe um componente psicológico para tal, a psicologia social explica que as pessoas preferem projetar no mundo aquilo que consideram como bom e justo, pois assim, tomados pelo “ Véu da Ignorância ” elas se machucam menos, e é da natureza humana buscar por um entendimento que se revele menos cru. O Realismo político, escola que defendo, por outro lado traz ideias contrárias a essa maquiagem da realidade, desde Maquiavel, passando pela escola elitista ( Pareto, Michels, Mosca) até chegar na abordagem moderna da Public Choice cujos criadores James Buchanan e Gordon Tullock foram laureados com o Nobel em 1986. Os princípios do Realismo Político são os seguintes:
- A política obedece leis objetivas que são fruto da natureza humana, “ Para estar em condições de melhorar a sociedade, é necessário entender previamente as leis pelas quais a sociedade se governa. Uma vez que a operação dessas leis independe, absolutamente, de nossas preferências , quaisquer homens que tentem desafiá-las terão de incorrer no risco do fracassso
- O Interesse do Estado é sempre configurado em termos de poder, apenas isso pode permitir antecipar os passos que um político passado, presente ou futuro deu ou dará no cenário político
- O Realismo parte do princípio que que seu conceito chave, o interesse baseado em termos de poder é universalmente válido, porém não com significado fixo nem permamente
- O Realismo Político conhece o significado da ação moral e reconhece a inevitável tensão entre os preceitos morais e as exigências para que uma ação política tenha êxito “ Desse modo o realismo considera a prudência (avaliação das consequências decorrentes de ações políticas alternativas ) representa a virtude suprema na política
- O Realismo político recusa-se a aceitar as aspirações morais como leis que regem o universo
- O Realista político não ignora a existência nem a relevância de padrões de pensamento que não sejam ditados pela política, Na qualidade de realista político, contudo, ele tem de subordinar esses padrões aos de caráter político e ele se afasta das outras escolas de pensamento quando estas impõem á esfera política quaisquer padrões de pensamento apropriados a outras esferas (MORGENTHAU,Hans: A Política entre as nações.1948)
O Realista portanto trabalha sempre tendo isso em mente e é por isso que o realista não fica chocado com questões como as que aconteceram na manhã do dia 24/04/2020, a saída de Sérgio Moro do governo. Como eu disse em artigos anteriores a chamada Nova Direita brasileira foi construída com base em uma utopia, a existência da possibilidade de governar negando a política, e pra ser justo com a análise Bolsonaro tentou durante um ano e meio fazer diferente e não jogar o jogo, para não ficar preso na explicação da ciência política que ofereci, trago uma visão sociológica também, Os Donos do Poder de Raymundo Faoro, era e ainda é muito utópico crer que no país do estamento burocrático e do patrimonialismo (Confusão do que é do Estado com o que é do governo) seria possível tal abordagem moralista. Desde o ano passado se pode perceber que havia ausência de articulação junto ao congresso, mas o governo compensava isso com uma espécie de democracia plebiscitária, terceirizando para a população a responsabilidade para fazer o país andar, com a popularidade em alta isso funcionou no ano passado, entretanto tal estratégia depende de que a população não se canse de estar na rua sempre. No caso particular do Brasil que desde 2013 o povo sistematicamente tinha de protestar, em 2019 apostar nisso era arriscado. Prova disso foi que as manifestações pela volta da prisão em segunda instância foram um fiasco em outubro daquele ano.
No nosso atual cenário existe um Trade Off entre a moralidade e a governabilidade, Trade Off significa uma circunstância em que a resolução de um problema gera a criação de outro. Temos que voltar um pouco no tempo para entender como o governo se colocou nessa situação. O Primeiro sinal foi em outubro de 2019 quando o presidente Jair Messias Bolsonaro rompeu com o presidente da sigla que o elegeu Luciano Bivar, ali foi o início da perda de capital político, da maior bancada do congresso o presidente passou a ter apenas cerca de 20 deputados. As polêmicas anteriores com Bebbiano e Santos Cruz não tiveram tanto impacto pois aconteceram no início de mandato quando a sociedade costuma manter uma postura de observação e não cobrança, com o rompimento no PSL o presidente saiu em busca de criar seu próprio partido, mesmo com alertas de especialistas em direito eleitoral e ciência política (inclusive esse que escreve) que não seria viável criar o partido para as eleições de 2020, isso fez com que os apoiadores do presidente que desejassem participar do pleito tivessem que se dividir entre vários partidos o que, tendencialmente irá prejudicar a formação de uma base forte capaz de dar capilaridade (alcance) em 2022
A perda de capital político iniciada com a saída do PSL se consolidou com a chegada da pandemia do coronavirus no país, as declarações negacionistas custaram o apoio de parcela do eleitorado responsável por sua vitória em 2018, perdendo a população, que foi onde Bolsonaro se escorou para governar em 2019 colocando pressão no legislativo usando a força das ruas, Bolsonaro se viu em uma sinuca de bico, ou abriria mão de sua utopia pela “Antipolítica” ou seria derrubado pelo congresso, com os militares garantindo que não iriam dar nenhum golpe ou embarcar em nenhuma aventura para salvar a pele do ex Capitão.
A saída encontrada por Bolsonaro foi a única possível e foi tardia, só quando ele sentiu medo real de perder o poder ele resolveu juntar esforços para a construção de uma base parlamentar, seguindo os princípios do realismo político o que foi feito é sim correto, só deve ser lamentado que não tenha sido feito em 2019 quando a paciência da sociedade era bem maior, ao atrair o centrão Bolsonaro isola Rodrigo Maia, atraindo cerca de 200 deputados e tendo a maior bancada do congresso. Portanto não foi um erro negociar cargos de segundo e terceiro escalão com o centrão, e também não seria um erro recriar ministérios ou aumentar o valor das emendas parlamentares visando a governabilidade, partindo de uma perspectiva realista claro.
Bolsonaro terá sim, pela primeira vez governabilidade, dizer que o governo acabou é sim queimar a largada, não se deve subestimar nem os Bolsonaristas fiéis que estão entre 25-30% do eleitorado e nem o fisiologismo do centrão. Se o acordo significar a aprovação dos projetos necessários pra economia crescer 5-7% em 2021 ele pode chegar muito forte para as eleicões de 2022, um impeachment está fora de radar por enquanto por alguns motivos, o primeiro é que não existe possibilidade de grandes manifestações de rua no meio de uma pandemia, nos impeachments anteriores (Collor e Dilma) milhões de pessoas foram as ruas para pressionar o congresso a entrar no jogo, outro fator é que tipo de força política irá bancar o impeachement de Bolsonaro, a parte da direita que abandonou o barco não é numerosa o suficiente, o centrão vê em Moro alguém ainda mais moralista com relação a criminalização da política e a esquerda jamais iria dar razão ao homem que derrubou Lula e colocou fim ao projeto de poder petista. Mesmo que Rodrigo Maia esteja rompido com o planalto o número de votos para barrar o impeachment é 192, Bolsonaro tem mais de 200. O que não está fora do radar é caso a popularidade venha a níveis Dilma-Temer após a saída de Sérgio Moro do governo é os militares desembarcarem do governo ou forçarem uma renúncia do presidente.
Duaas coisas espantaram muito nos eventos pós dia 24/05/2020. Primeio que menos de 48 horas antes do evento quando os realistas alertavam para a necessidade de articulação e diálogo com o congresso eram taxados de coniventes e até mesmo favoráveis a corrupção, e isso dentro da direita que apoia o presidente, a maioria bradava aos quatro cantos que a era do presidencialismo de coalizão acabou, que não havia mais negociações, que o presidente tinha um excelente corpo de ministros totalmente técnico e independente, essas mesmas pessoas terão que efetuar uma ginástica hermêneutica tremenda para defender agora os laços de Bolsonaro com a “Velha Política” e seu abandono da promessa de campanha da carta branca aos ministros. Desejo boa sorte a eles, os realistas tem a tranquilidade de poder dizer que nunca foram hipócritas ou incoerentes.
O segundo fator que espanta é o comportamento massificado demonstrado pelos chamados bolsonaristas, 24 horas antes da saída de Moro estavam defendendo o ministro e acusando a imprensa de fake news, quando o mesmo saiu de forma automática virou traidor, vendido e até mesmo comunista. O filósofo espanhol José Ortega y Gasset trata disso na sua famosa obra A Rebelião das Massas, O Homem massa nas palavras do filósofo prefere o barbarismo e o primitivismo do que a nobreza (nobreza aqui diz respeito a comportamento e não classe social). Em nossa sociedade esse comportamento massificado é o comum, a exceção são os demais. Essa não é uma crítica direta aos bolsonaristas mas a sociedade como um todo, a necessidade de se ter uma crença social/ideológica obscurece a racionalidade e aí entra em campo a necessidade de defesa quase que zumbificada, nas palavras do também filósofo Nicolás Goméz Dávila, um dos grandes filósofos reacionários do século XX “ As ideologias foram inventadas para que aquele que não pensa possa opinar ” Espanta mais ainda isso partir de conservadores, uma vez que nas palavras de seu próprio criador Edmund Burke, “o Conservadorismo é a negação da ideologia”. Diversos outros autores criticaram a paixão política e ideológica, Kirk, Voegelin, G.K.Chesterton, Nelson Rodrigues mas para o homem massa de Gasset não compactuar com alienações ou manipulações é ser alienado, burro ou Isentão.
Claro que existem pessoas que não podem dar sua real opinião quanto a situação, candidatos a vereador e prefeito não devem tomar partido visando que podem perder votos de um lado ou de outro, líderes de movimentos políticos seguem diretrizes de seus superiores e por aí vai…
Sobre o evento em si, creio que um julgamento moral de minha parte sobre as acusações de ambos os lados seja irrelevante visto que isso se baseia em conjuntos de valores determinados pela criação que cada um recebeu, o que não é irrelevante são os erros de estratégia política envolvidos na questão. (Para uma análise técnico-jurídica da questão sugiro o artigo aqui mesmo no blog do nosso especialista Wagner Constâncio).
Sérgio Moro é um herói nacional, sua taxa de aprovação é bem superior a de qualquer líder do país e talvez até maior que a popularidade de Neymar, conseguir alguém desse nível para sua equipe além de raro, é impedir o surgimento de um potencial rival mais forte que você. Já era previsível após o abandono da magistratura que Moro tivesse ambições presidenciais, mas o que todos (imprensa, acadêmicos, políticos) esperavam era que Bolsonaro o lançasse como sucessor em 2026. Transformar Moro em inimigo foi o maior erro de Bolsonaro tanto do ponto de vista pragmático quanto do ponto de vista discursivo. Nesses momentos parece que mesmo com mais de trinta anos de congresso Bolsonaro é muito ingênuo e sem malícia, o melhor escudo possível para escapar das acusações de “velha política” ao se alinhar ao centrão era ter Sérgio Moro na equipe. Quando levantarem as incômodas perguntas, e pode ter certeza que elas serão levantadas pela opinião pública. Bolsonaro poderia simplesmente dizer que “ Você acha que Sérgio Moro aprovaria algo não republicano?” . Do ponto de vista pragmático o erro é gerar um rival no espectro ideológico que até então Bolsonaro reinava soberano, dividir votos nunca é uma boa escolha. Vide o erro da esquerda nas eleições de 2018 com Haddad e Ciro. Moro se efetivamente for candidato consegue roubar tranquilamente os eleitores que são antipetistas mas não são bolsonaristas.
Partindo dos princípios do realismo histórico de Maquiavel, e da prudência como virtude máxima do governo e do governante com exposto não só por Morgenthau, mas também por Russell Kirk e por Raymond Aron respectivamente nas obras “ A Política da Prudência “ e “ Paz e Guerra entre as Nações” fica claro que a decisão de cortar seu ministro mais popular e mais forte não foi correta, estou ignorando totalmente a questão jurídica e focando apenas na parte da política. Os três autores alertam que a política apesar de dominada pelo pragmatismo não é formada somente por ele, percepção, discurso e imagem tem um papel de grande destaque.
Outra dimensão de erro estratégico se dá com relação ao STF, com o mandato do ministro Dias Toffoli acabando em setembro e a subida ao poder de Luís Fux se esperaria menos problemas para o governo uma vez que Fux é da ala lavajatista e aliado de Moro que até então era ministro da justiça, agora essa configuração de poder se inverte, a ala garantista perderá poder para a ala legalista (garantismo é a linha jurídica voltada a proteção das liberdades individuais básicas e uma maior limitação do estado, enquanto legalismo significa seguir de forma mais estrita aquilo que está escrito nas leis) e isso pode se traduzir em duras derrotas para o governo assim como aconteceu durante o mandato de Toffoli, notadamente com a revogação da possibilidade de prisão em segunda instância.
Agora sem Moro a imagem que fica, é que o governo se vendeu ao centrão de Kassab, Roberto Jefferson, Ciro Nogueira eValdemar da Costa Neto em troca de sobrevivência. Para um realista isso é percebido como parte do jogo, mas para azar de Bolsonaro a parcela da população que entende o realismo político é mínima. O que Bolsonaro não percebeu é que poderia fazer o mesmo acordo utilizando outras peças que a saída do governo não seria tão traumática e destrutiva quanto Moro. Pois até mesmo o “custo” do apoio com o centrão aumentou no cenário atual uma vez que para os partidos sustentarem um governo impopular o preço aumenta. Como bem disse meu amigo Alexandre Lamounier “Bolsonaro estava com tanto medo de morrer que acabou suicidando”.