Após a vitória de Jair Bolsonaro nas eleições de 2018 e a subsequente escolha do diplomata Ernesto Fraga Araújo para o ministério das relações exteriores, muitos especialistas na área apontaram que a indicação era uma loucura e que Araújo só virou uma opção pelo alinhamento ideológico e não por suas capacidades para exercer a função.
Após quase dois anos completos da administração Bolsonaro, temos mais capacidades de analisar como a atuação de Araújo impactou para o bem ou para o mal as relações exteriores do Brasil. Para ser capaz de oferecer um panorama completo, precisamos analisar não somente as ações de Araújo, mas também aonde ele se encaixa historicamente na política externa brasileira e na tradição teórica do Itamaraty, e examinar como algumas mudanças na condução da diplomacia do país impactaram na visão que temos hoje sobre a política externa do Brasil.
Historicamente, não há consenso sobre quando efetivamente o Brasil passou a ter uma política externa. Alguns historiadores defendem que apenas após a independência do país se poderia dizer isso, uma vez que para participar das Relações Internacionais em uma perspectiva tradicional deve-se possuir alguns elementos constitutivos como Povo, Território e Soberania.
O ponto crítico é o terceiro, afinal de contas, uma colônia pode até participar do cenário internacional mas com o controle efetivo derivando da Metrópole (Portugal). Na Prática, não houve grandes mudanças do que o Brasil Colônia fazia para o Brasil independente na arena internacional, podendo ser explicado de duas maneiras: A primeira, é que o StateBuilding do país precedeu o NationBuilding. Esses conceitos que emergiram no estudo de política comparada conduzido pelo Cientista Político Gabriel Almond, StateBuilding, se refere ao processo de unificação política nacional e especificamente a constituição de uma burocracia centralizada e eficiente capaz de ampliar as capacidades reguladoras e de extração (tributos) do sistema político, enquanto NationBuilding refere-se aos aspectos culturais do desenvolvimento histórico e social de um determinado país, demonstrando o processo das pessoas abrirem mão de suas lealdades locais em prol de uma autoridade central ampla.
A Inversão desse processo ainda cobra sua conta no Brasil, com a dificuldade de se definir o que faz e o que não faz parte da cultura nacional, quais são os heróis da nação e os mitos fundadores, razão pela qual o Brasil é um país sem identidade facilmente reconhecível perante os demais Estados no Sistema Internacional, a formação de nossa nacionalidade sempre esteve ligada diretamente ao plano externo, desde a delimitação do território, a constituição das fronteiras, a estruturação da economia e por aí vai…
Outro ponto que contribuiu para essa ausência de elementos facilmente identificáveis como brasileiros, foi a ausência de uma guerra de independência. O Brasil teve uma das transições de colônia para metrópole mais suaves do mundo, e ainda que seja contra intuitivo, isso foi terrível para a nossa formação enquanto nação.
Diferentemente dos Estados Unidos, que sim utilizou muito do sistema britânico em sua constituição, mas adaptando as suas necessidades e aspirações, o Brasil simplesmente copiou e colou a estrutura governamental existente previamente em Portugal. O fato de não ter precisado lutar para ter nossa soberania contribuiu para uma constituição cultural mal sustentada que de certa forma é o pecado original para todos os problemas culturais enfrentados pelo Brasil mesmo na era contemporânea.
Ainda que tenha sido prejudicial com relação à construção da nação a ausência de ruptura com Portugal, poupou trabalho para os historiadores e internacionalistas para categorizar e dividir as fases da política externa do Brasil, de forma resumida e simplificada:
Etapa 1: Aproximadamente 1530 a 1822, implantação do sistema de governo geral do Brasil pela Coroa portuguesa, atribuição das primeiras capitanias hereditárias e o movimento gradual rumo a independência
Etapa 2: 1822 a 1930, nessa fase existe a conclusão do ciclo agrário-exportador da economia brasileira, o início ainda tímido da industrialização, e a emergência dos Estados Unidos como Superpotência (o relacionamento com os EUA sempre foi tema relevante na política externa brasileira) figuras de destaque dessa era foram o Barão do Rio Branco (patrono e elemento ideológico unificador da criação da diplomacia brasileira) e o Barão de Mauá.
Etapa 3: 1930-1945, O Estado Novo varguista pode ter deixado várias heranças malditas que duram até hoje (CLT) mas para a política externa brasileira foi um dos períodos de maior importância e relevância, por introduzir na vida diplomática brasileira um conceito extremamente importante chamado pragmatismo que irei explicar mais adiante, ao final desse período se tem como grande conquista a vitória na segunda guerra mundial (1939-1945) ao lado dos aliados com grande desempenho brasileiro na Itália.
Etapa 4: 1945-1960, Aqui se consolida o Instituto Rio Branco como forma de ingresso na carreira diplomática, portanto o Itamaraty passa a ser composto por profissionais na área de diplomacia removendo os vínculos familiares e passando a exaltar a meritocracia, essa fase no plano externo foi amplamente marcada pelo americanismo dos governos Dutra (1946-1951) e JK (1956-1961)
Etapa 5: 1961-1964, Se a fase anterior foi marcada pelo americanismo, essa fase foi marcada pela ruptura consistente com tudo que havia sido feito pelos governos anteriores, Jânio Quadros e João Goulart retiraram o Brasil do bloco ocidental na guerra fria e passaram a flertar com a URSS e Cuba, sob influência de Santiago Dantas e Araújo Castro é criado inclusive um termo, Política Externa independente para se referir aos posicionamentos do governo brasileiro, outra influência inegável foi o economista argentino Raul Presbich e a CEPAL, modelo de desenvolvimento econômico tendo o Estado e não o mercado como principal agente para a industrialização do país.
Etapa 6: 1964-1985, Não dá para colocar todo o regime militar em uma única caixa, as posturas de política externa do Brasil mudaram demais no período, Castelo Branco, em minha avaliação o melhor presidente que o Brasil já teve. Se destacando tanto na política externa quanto na gestão econômica, os demais militares de outras alas consideradas mais linha dura do exército foram em parte responsáveis pelo grande atraso econômico do Brasil que é tema de debate até hoje, o excesso de estatais, a baixa competitividade das empresas brasileiras, o sonho de virar uma potência nuclear, o protecionismo… tudo isso tem origem no governo do general Costa e Silva e perdurou até hoje com breves hiatos como nos anos Collor e FHC. Nesse período também se tem a “década perdida”motivada pelos choques internacionais do petróleo e os insanos planos cambiais heterodoxos.
Etapa 7: 1985-1990, A era Sarney trouxe grandes mudanças na condução diplomática da nação, e também ajudou bastante no aprofundamento da crise inflacionária com os famosos fiscais de Sarney e tabelamento de preço, é sempre importante entender o momento econômico para entender a capacidade do país no plano internacional, são poucos os casos de países sem dinheiro que conseguem preservar sua relevância na diplomacia mundial, devido a essa baixa solidez da posição brasileira Sarney criou um instituto que mudou a forma como o Itamaraty e a política externa brasileira aconteciam, esse instituto é chamado de diplomacia presidencial. Com isso o Itamaraty passou a ocupar papel secundário e meramente de execução da política externa através do corpo de diplomatas, mas a formulação passou a ser feita mais pelo presidente da república.
Etapa 8: 1990-2001, Esse período teve a presença de três presidentes da república, Fernando Collor deu um importante passo com relação a abertura comercial do país, após vários anos de mercado fechado e produtos ruins, Collor na famosa frase “os carros brasileiros são carroças” representava o espírito daquele tempo, a vitória dos EUA na guerra fria e o estabelecimento do consenso de Washington… Mas Collor não conseguiu sair impune, após irritar o poderoso lobby das quatro grandes montadoras brasileiras, o seu impeachment comprovou que o único capitalismo que a elite brasileira aceitaria seria o capitalismo de compadrio, alguns anos depois no governo Itamar Franco e FHC após uma brilhante equipe de economistas liderada por Gustavo Franco dar fim ao problema monetário do Brasil, importações passaram a tomar conta das ruas, as famosas lojas de 1.99 estavam em todos os lugares e pela primeira vez o Brasileiro teve a sua moeda em pé de igualdade com o dólar. Do ponto de vista restrito da política externa houve um fortalecimento do bilateralismo nas negociações do comércio internacional em relação ao multilateralismo. Mas as coisas ficaram mais complicadas que isso, mais uma vez nossa ausência de uma cultura bem definida cobrou o seu preço… a moderna gestão realizada por FHC com as privatizações e controle inflacionário despertaram o ódio de uma geração educada para pensar que o Estado tinha a obrigação de garantir tudo para a sociedade, nesse cenário acontece a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva e uma nova fase da política externa brasileira se inicia.
Etapa 9: 2002-2016, A gestão petista na política externa representou a consolidação da diplomacia presidencial, o Itamaraty não tinha voz ativa e o chanceler não passava de um fantoche, a voz determinante da formulação e condução da política externa era o palácio do planalto, o período também foi marcado por uma releitura da política externa independente do início dos anos 60, como é comum a quase todo partido ou político de esquerda existe um ódio em relação aos Estados Unidos, portanto a diplomacia petista fazia questão de se colocar ao lado de todos os rivais dos americanos, inclusive gerando problemas econômicos no Mercosul devido a ação Chinesa, a esquerda costuma dizer que a direita sempre foi americanista ideologicamente na gestão da política externa, mas ela foi soviética no passado e hoje é chinesa em termos de aliança ideológica. Nos anos vermelhos a política externa foi mais usada como forma de promoção dos interesses do partido dos trabalhadores do que como um corpo diplomático visando os ideais nacionais e o bem estar de seu povo, o Brasil tomou calote calado da Bolívia, emprestou dinheiro para países comprovadamente incapazes de honrar a dívida…, a diplomacia Sul-Sul tão exaltada por alguns acadêmicos e jornalistas nada mais era que uma massagem no ego inflado do governo federal… O Brasil não tiraria nenhum tipo de ganho financeiro, estratégico ou de influência em priorizar países sem relevância do plano internacional, claro que estou descartando aqui os ganhos pessoais que ocorreram para os alinhados ao Lulopetismo, quero demonstrar é que não havia motivos diplomáticos para tantas embaixadas inúteis como foram construídas, por exemplo, o Brasil mantinha uma política externa de maciça presença externa sem haver necessidade, pois além do Brasil não ser uma grande potência e sim uma potência regional ele sempre acreditou em Soft Power e não em Hard Power. Grandes Potências militares precisam sim estar presentes em todos os continentes, China, Rússia e Estados Unidos devem sim ter essa capacidade externa, mas o Brasil não tinha nem a capacidade e nem a necessidade, então ainda que alguém considere os petistas inocentes o erro de gestão é visível demais.
Após esse passeio histórico, já somos capazes de analisar como a gestão Ernesto Araújo está realmente se saindo, particularmente não enxergo nenhum tipo de inovação ou revolução na gestão atual, mas engana-se quem pensa que isso é ruim, de invencionices surgiram as piores práticas das relações internacionais brasileiras, a política externa independente e a diplomacia presidencial , a política externa independente foi um erro sobretudo de timing em sua primeira experiência, ninguém com um pingo de juízo conduziria o país para o abismo no auge da guerra fria, violando os preceitos da geopolítica básica ( Mackinder e Mearsheimer ) o Brasil se moveu para o lado da URSS por um tempo, passando a conviver com o risco diário de uma intervenção americana, vale lembrar que os EUA haviam perdido Cuba em 1959 e fracassado ao depor Fidel em 1961, portanto não precisa ser um gênio para perceber que não tolerariam em hipótese alguma outro país socialista em sua área de influência, na segunda vez que a política externa independente foi aplicada ela até tinha um contexto internacional que permitia a sua aplicação entretanto foi desvirtuada para servir aos interesses do partido dos trabalhadores.
Já a diplomacia presidencial tornou inviável um planejamento de longo prazo para a política externa brasileira, uma troca constante de direcionamento e alianças enfraquece a capacidade do país em criar uma boa estratégia para sua inserção internacional, mesmo considerando mandatos consecutivos de um mesmo presidente ou grupo político, oito ou doze anos não são muito para conseguir dar um salto de país em desenvolvimento para país desenvolvido por exemplo. Alguns historiadores criticam essa visão de que para funcionar adequadamente o Itamaraty precisaria de um insulamento, ou seja, não considerar variáveis postas por grupos de pressão sejam políticos, midiáticos ou financeiros. Para discutir a fundo essa questão se deve entrar em uma subárea da política externa que foge do interesse desse artigo que é a composição dos grupos de influência, entretanto é de se notar que as relações exteriores demandam por vezes ações rápidas, e que na maioria dos casos quando se tenta ouvir a todos a decisão quase nunca é a mais adequada.
A Gestão Araújo tem sido boa até então por reciclar para os tempos atuais práticas que já deram certo no passado, notadamente o bilateralismo nas negociações do comércio exterior, o americanismo ao se posicionar com relação aos grandes temas da política internacional, além da tentativa de resgatar o Brasil como parte do ocidente.
1 comentário
Excelente análise parabéns Rodrigo