As últimas semanas foram extremamente movimentadas na Política Internacional, e dessa vez o centro do debate não foram os suspeitos habituais como a Guerra da Ucrânia, o conflito entre Israel e o grupo terrorista Hamas ou as cenas carinhosas de Emmanuel Macron com a sua esposa durante visita de Estado no Vietnã.
Dessa vez o centro do debate na Política Internacional foi o Brasil. Na última semana a Polícia Federal desmantelou uma gigantesca rede de espionagem russa em atividade no Brasil. Os espiões que passaram décadas no Brasil tinham todos os documentos em ordem, passaportes válidos, identidades fornecidas, carteira de habilitação e todos os documentos exigidos para uma vida comum no Brasil. Muitos deles se tornaram empresários, alguns até apareceram na TV, construíram família, alguns uma segunda família no melhor estilo Guerra Fria.
Até esse ponto, apesar do volume e da duração da operação russa (desde os anos 80) assustar, todos sabemos que os grandes serviços de inteligência como o FSB russo, o Mossad e a CIA possuem agentes em todos os cantos do globo. Entretanto ás coisas se complicam, ou deveriam complicar, quando fica comprovado que funcionários oficiais da diplomacia de Estado russa ajudavam ativamente na obtenção dos documentos e para lavagem de dinheiro e possivelmente tráfico internacional de drogas.
Consultado pelo site, o procurador da república do MPF Lucas Gualtieri, especialista em crimes transnacionais, argumentou três razões que tornaram o Brasil um alvo muito fácil para uma operação de espionagem desse porte. “O Brasil é um país multicultural, não existe um arquétipo específico do que seria o brasileiro, o passaporte brasileiro é muito bem aceito ao redor do mundo e existe uma fragilidade enorme de obtenção de certidões de nascimento e identidade”
Quando olhamos para o recente boom de políticos, analistas e influenciadores simpáticos a Vladimir Putin, Alexander Dugin, ao Eurasianismo e a enxertar orientalismos sem pé nem cabeça dentro, especialmente, do movimento conservador brasileiro como o antissemitismo disfarçado de indignação com a guerra contra o Hamas. Apenas alguém muito inexperiente nesse mundo não somará 2+2=4.
Para aqueles que possuem boa memória, vão se lembrar do escândalo feito pelo governo Dilma Roussef quando o criminoso ciber-terrorista Julian Assange vazou dados na NSA para o mundo todo via Wikileaks. Dilma cancelou uma visita de Estado nos Estados Unidos e fez um discurso em repúdio durante o tradicional discurso do chefe de Estado brasileiro na abertura da Assembléia Geral da ONU. É absurdo o silêncio não só do governo como do Itamaraty em relação a fábrica de espiões russa, o mínimo que se esperaria era convocar o embaixador russo para prestar esclarecimentos. Esse tipo de indignação não pode ser seletiva, do contrário se torna uma paródia, uma piada em si mesmo. O anão diplomático está evoluindo para uma completa nulidade diplomática.
Em paralelo ao escândalo dos espiões Donald Trump e seu governo vem subindo o tom contra as ações do STF em especial do ministro Alexandre de Moraes. O Itamaraty mais uma vez têm se mostrado incapaz de assumir protagonismo na política externa deixando quase tudo nas mãos de ideólogos incapazes ligados ao PT e ao palácio do planalto.
Apenas uma coisa será capaz de restaurar o prestígio que o Itamaraty um dia teve após tantas gestões desastradas, aqui incluo também a de Bolsonaro extremamente errática e sem continuidade alguma. A Casa de Rio Branco precisa recuperar o protagonismo na elaboração, condução e execução da Política Externa. É irônico que o Itamaraty tenha tido mais peso e mais respeito durante o regime militar, um regime dentro do espectro dos autoritarismos do que em pleno regime democrático. É necessário banir a diplomacia presidencial, algo tão importante quanto a política externa não pode ficar ao controle eminentemente político, ainda mais no Brasil com nossa infeliz tradição patrimonialista que confunde sem cerimônia o público com o privado, e ainda mais importante, o que é política de Governo e o que é política de Estado.
“No Brasil, pode dizer-se que só excepcionalmente tivemos um sistema administrativo e um corpo de funcionários puramente dedicados a interesses objetivos e fundados nesses interesses. Ao contrário, é possível acompanhar, ao longo de nossa história, o predomínio constante das vontades particulares que encontram seu ambiente próprio em círculos fechados e pouco acessíveis a uma ordenação impessoal.” (HOLANDA, 1936, p 146).
Em artigos anteriores já abordei o fato de que o pecado original da formação brasileira tenha sido a ocorrência invertida dos fenômenos Nation-Building e State-Building. Tal característica da nossa formação se entrelaça com o patrimonialismo e o “jeitinho brasileiro”. Com essas “qualidades” deixar a política externa sob controle político só irá contribuir para o contínuo descrédito do Itamaraty e para o enfraquecimento do Brasil nas Relações Internacionais.
Alexandre de Moraes, em que pese toda a sua formação intelectual, que realmente é robusta, gostemos ou não do personagem, parece não estar imune aos devaneios do patrimonialismo, uma sanção direcionada a ele não pode em hipótese alguma ser confundida como uma sanção ao Estado brasileiro. Nem o governo federal e nem o Itamaraty deveriam se intrometer em uma briga que não é deles. Se Lula optar pelo silêncio eu serei o primeiro a escrever um artigo elogiando seu uso da Raison D’Etat na questão.
Alexandre também disse que o Lobby de Eduardo Bolsonaro nos Estados Unidos se configuraria como Conspiração e Abolição do Estado de Direito. Talvez Alexandre emita em seguir um mandato de prisão para seu colega de supremo Cristiano Zanin que passou por todas ás instâncias internacionais existentes quando defendia Lula durante a operação Lava-Jato. OEA, CIJ, ONU, UE… Não houve sequer um órgão internacional que Zanin não tenha ido protestar em defesa do seu cliente e ainda mais com críticas pesadíssimas a todo o STF, não apenas direcionadas a um ministro. Eduardo Bolsonaro está fazendo a mesmíssima coisa.
A Grande questão é que o embate jurídico é apenas secundário diante do que realmente está acontecendo, a realidade política em questão é que o Brasil é o palco de um embate entre várias potências que estão readquirindo características imperiais. Putin querendo restaurar o império russo, a Europa acordando de seu sonho pacifista, a China já tomou Hong Kong e ensaia avançar sobre Taiwan. Os Estados Unidos, ainda mais sob Trump também querem reativar sua capacidade imperial.
Se essa descrição da fotografia atual da Política Internacional te remete diretamente ao século XIX você não está errado, as potências na segunda década do século XXI parecem se mover através da teoria das Esferas de Influência, esse conceito já é antigo nas Relações Internacionais e foi usado para, principalmente descrever o comportamento das potências no mundo anterior a primeira guerra mundial (1914-1918) e também em outros períodos pré-1648 (Tratado de Westphalia).
Sob essa visão teórica ás potências declaram que certos espaços são de domínio exclusivo seu e expulsa outras potências da região. Como os Estados Unidos realizou com sucesso durante o século XIX ao declarar que a América seria para os americanos e não para os europeus através da Doutrina Monroe. É esse cenário que torna o Brasil um centro de disputa direto entre o Big Three (Estados Unidos, Rússia, China).
Mas aqui se torna importante uma diferenciação, as esferas de influência são um nível acima do que uma projeção de poder via o conceito de Soft Power de Joseph Nye. Não se trata de promoção de valores, ou de exportar algum tipo de indústria como a força de Hollywood no cinema global, o Rock britânico nos anos 60, ou mais recentemente o grande projeto esportivo da Arábia Saudita com o futebol e a Copa do Mundo. Se o projeto é imperial, então é necessário possuir territórios, se tenho territórios tenho metrópoles e colônias, que podem até possuir maior ou menor autonomia em relação a metrópole mas precisam jogar o jogo da forma que quem manda quer. “Se trata sem dúvida de cooperação militar, mas também uma forma de dominação política”. (HEVIA,2016, p 2)
Por isso as reclamações de violação de soberania de todas ás partes no Brasil não fazem sentido algum em uma análise, o jogo está sendo jogado no nível mais alto, não no nível das potências médias, importante também que os analistas não incorram no pior que podem incorrer, incoerência.
Se alguém gritou aos quatro cantos que o governo Biden interferiu nas eleições brasileiras ao dar um ultimato para o governo Bolsonaro de que qualquer ruptura com o processo democrático não teria apoio dos Estados Unidos e se mantiver calado ou apoiar o que Donald Trump irá fazer nas próximas eleições nacionais para eleger um Proxy seu no Brasil, não se trata de um analista sério. Biden agiu conforme os valores que naquele momento eram mais estratégicos para os Estados Unidos, e Trump fará o mesmo.
A Realidade política está acima das percepções de parte a parte, os Estados Unidos não querem a China e a Rússia no seu quintal, isso está cada vez mais claro nas decisões e discursos de Trump e de Marco Rúbio. A China já foi expulsa do Panamá nas primeiras semanas de governo. O nome disso é Big Stick. Trump agora precisa expulsar a China do Brasil. Uma tarefa mais difícil dada a proximidade ideológica de Lula com Xi-Jing Ping e o fato de o Brasil estar quase dentro da Debtbook Diplomacy chinesa.
Alexandre é apenas uma pedra no caminho de um jogo muito maior…
Lista de Abreviações
CIJ: Corte Internacional de Justiça
OEA: Organização dos Estados Americanos
ONU: Organização das Nações Unidas
EU: União Europeia
Referências Bibliográficas
ALMOND, Gabriel, POWELL, Bingham. Comparative Politics: A Developmental Approach. Boston. Little & Brown Company. 1966
< https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2024/01/14/funcionario-da-diplomacia-russa-no-brasil-e-investigado-por-ajudar-suposto-espiao-sergey-cherkasov-entenda.ghtml > Acesso em 29/05/2025
HEVIA, James L.The Encyclopedia of Empire. Nova Jersey. Riley-Blackwell. 2016
HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. São Paulo. Cia das Letras. 2015
KISSINGER, Henry. Ordem Mundial. Rio de Janeiro. Objetiva. 2014
NYE, Joseph. Soft-Power: The Means To Success in World Politics. Nova Iorque. Public Affairs. 2004
PARKER, Sam and Gabrielle Chefitz. “Debtbook Diplomacy.” Belfer Center for Science and International Affairs, Harvard Kennedy School, May 24, 2018.