Passados cerca de um mês desde o início oficial das hostilidades entre Ucrânia e Rússia cada vez mais temos a sensação de estar vendo um evento definidor na Política Internacional, aqueles raros momentos em que se percebe que o mundo está mudando diante dos seus olhos e ter a verdadeira dimensão disso em tempo real é ainda mais difícil. A minha geração, no meio das suas duas décadas de vida já tinha presenciado um evento dessa magnitude, o 11/09 de 2001. Não vou entrar em detalhes do que ele causou por ser um tema que escrevo de forma recorrente aqui no site, meu foco será a projeção de como será a nova ordem global que irá se desenhar após esse conflito.
Antes de tudo é necessário entendermos e analisarmos quais foram os outros eventos definidores da Política Internacional, é sempre bom lembrar que não podemos falar em Política Internacional antes da existência do ator primordial da mesma que é o Estado-Nação, a sua constituição data do chamado tratado de Westphalia de 1648 que colocou fim á chamada Guerra dos 30 anos. Esse evento é o marco zero das Relações Internacionais. Então vamos analisar apenas eventos posteriores em relação a essa data.
O primeiro desses eventos é a Revolução Francesa de 1789. Os impactos da Revolução Francesa são sentidos até os dias de hoje, a maioria das ideologias políticas existentes surgiram do apoio ou da oposição frente ao evento, às raízes do socialismo vieram dos jacobinos e sua ambição utópica de construção de um mundo perfeito, ideal que superasse totalmente o passado é a base do chamado progressismo, além disso, duas das principais vertentes políticas da direita, o conservadorismo e o reacionarismo, tiveram sua origem nesse evento como aponta o filósofo Inglês Roger Scruton na obra Conservadorismo: Um convite á grande tradição. Após o caos revolucionário que dominou a França, temos o segundo desses eventos com a ascensão de Napoleão Bonaparte e as Guerras Napoleônicas.
Napoleão se aproveitou de um momento político favorável e acabou domando o espírito da revolução ao mesmo tempo que a representava, transformando o caos em ordem e reformando completamente todo o sistema administrativo e legal Francês com os Códigos Napoleônicos internamente, enquanto se lançava em um imperialismo que visava unificar a Europa toda sobre o seu domínio. No ano de 1809 seus exércitos esmagaram totalmente qualquer chance de resistência na Europa ocidental e central, Napoleão redesenhou o mapa da Geopolítica europeia de acordo com suas ambições, anexando territórios vitais à França e estabelecendo Estados satélites em outros, muitas vezes governados por parentes ou agentes franceses, apenas duas nações conseguiram resistir aos avanços da França, Inglaterra e Rússia.
A Inglaterra sempre teve uma vantagem geopolítica pelo fato de ser uma ilha, o chamado Stopping power of water imortalizado pelo teórico internacional John Mearsheimer, essa explicação também é válida no contexto da segunda guerra mundial, em que a Inglaterra não foi dominada pela máquina de guerra hitlerista, invadir e dominar pelo mar ou pelo ar é virtualmente impossível. De nada adianta o poder terrestre nesse sentido. Ainda mais contra a senhora absoluta dos mares no contexto da época, sua posição privilegiada permitiu apenas esperar que Napoleão cometesse um erro para capitanear uma reação (ainda que tardia) de toda a Europa contra ele. No caso da Rússia o erro de Napoleão foi estratégico, se achando invencível, resolveu invadir um território extremamente difícil de controlar, dada a sua extensão e também um tipo de ocupação mais cara do que a capacidade de financiamento que seu império lhe permitia. O conceito de guerra total surge nesse contexto das Guerras Napoleônicas, à partir dessa época quando as nações entrassem em conflito, a mobilização dos esforços seria geral, todos os elementos produtivos das economias seriam deslocados para o financiamento do conflito, os tributos aumentariam sensivelmente e o dinamismo da economia se perderia. Essa é a razão para que todo império tenha seu fim, a incapacidade de sustentar o seu tamanho.
Com a derrota de Napoleão e o fortalecimento da Inglaterra e da Rússia ficou bem claro que um retorno ao equilíbrio de poder pré-revolucionário seria inviável. É por isso que surge o Congresso de Viena em 1815 que restaura o equilíbrio de poder com um sistema de hegemonia compartilhada entre as potências europeias. “Esse equilíbrio precisava se mostrar capaz de evitar a recorrência do imperialismo francês que resultara numa quase hegemonia da França na Europa, especialmente pelo advento da Rússia haver originado um perigo semelhante a partir do leste”. (KISSINGER, 2015, p 67). Em termos de distribuição de poder a Europa vivia na época o que chamamos de multipolaridade desbalanceada, a Inglaterra era a potência mais poderosa, porém não era poderosa o suficiente para que seu poder não pudesse ser desafiado. O chamado Conserto Europeu permaneceu operante até a eclosão da primeira guerra mundial em 1914, esse sistema estava preparado para conter o ímpeto francês e russo, e foi responsável pelo maior período de paz no continente desde o início da Revolução Francesa, mas ele não estava preparado para conter uma Alemanha recém unificada, com altos níveis de industrialização que desejava desafiar o poder inglês soberano no século XIX e no início do século XX.
Historiadores e Analistas Internacionais debatem nos últimos cem anos quais foram os motivos da primeira guerra mundial, o assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando é apontado como o estopim, mas o clima europeu no fim do século XIX já apontava que o novo século traria fim ao período de paz e estabilidade que conheceram após o Congresso de Viena. Durante a rodada inicial de negociações do Congresso de Viena foi restaurado para a França suas dimensões territoriais pré expansionismo napoleônico, nos eventos da guerra franco-prussiana de 1870, a França teve parte do seu território tomado pela futura Alemanha. Em relação a Rússia a Alemanha também era vista com maus olhos e desconfiança pela ambição de construir uma estrada de ferro ligando Berlim à Bagdá, adentrando totalmente na esfera de influência russa.
O aprofundamento dos processos relacionados a revolução industrial fizeram com que a Alemanha conseguisse competir economicamente com a Inglaterra, à partir disso as elites financeiras e industriais de Londres, Paris e St.Petersburg já tinham bem claro, a Alemanha era uma ameaça e precisava ser contida, não fosse o assassinato do arquiduque, seria qualquer outro estopim.
O fim da primeira grande guerra trouxe consigo um novo arranjo diplomático com o objetivo declarado de impedir que novos conflitos armados viessem a surgir, A Liga das Nações surgiu dessa ambição ancorada nos princípios da não agressão e da diplomacia como meio de solução das controvérsias entre os membros, baseada no internacionalismo idealista do presidente americano Woodrow Wilson, (o idealismo é uma das vertentes da teoria liberal de política internacional) a Liga das Nações adotou um princípio de igualdade entre seus membros, como resultado qualquer decisão somente seria tomada havendo consenso entre todos os Estados membros. Hoje é bem claro que a Liga das Nações foi um empreendimento falho, mas na época poucos intelectuais e políticos discordaram do entusiasmo de que a então única guerra mundial seria a última.
É nesse cenário que o célebre historiador Edward Hallet Carr publicou uma das obras mais relevantes da história das Relações Internacionais. O livro 20 anos de crise: 1919-1939, foi o mais importante relato em tempo real das falhas da Liga das Nações desde a assinatura do tratado de Versalhes. Na obra Carr divide os pensadores da política internacional em duas escolas, os realistas e os idealistas. Os idealistas como Wilson e Norman Angeli acreditavam que uma nova e superior ordem internacional poderia surgir em torno da Liga. Carr aponta que o próprio tratado de Versalhes tinha falhas estruturais e que a Liga não passava de um experimento esperançoso porém incapaz de realizar o necessário para que a paz fosse mantida. Na esteira do pensamento de outro autor realista, Hans Morgenthau, Carr argumenta que as capacidades materiais dos Estados pesavam mais do que suas ideias e que para o realista não existe dimensão moral na Política. Portanto o certo a se fazer é o que gera resultados. Em outras palavras a diplomacia só é útil quando se tem a capacidade material (armas) para sustentá-la.
A diplomacia europeia da época não tinha essa capacidade material, Hitler fez as potências europeias de gato e sapato com repetidos sinais de que não iria respeitar nenhuma diplomacia vazia de poder bruto. A Inglaterra de Neville Chamberlain achava que a Alemanha era problema da França, e a França passava a responsabilidade para a Inglaterra que afinal era a maior potência do continente. Hitler se aproveitou dessa fraqueza e partiu em busca do seu sonho doentio de uma Alemanha orgulhosa, pura e ariana, quando Churchill chegou ao poder já era tarde demais para conter a Alemanha militarmente sem um enfrentamento direto. É curioso pensar que se o Japão não tivesse feito um cálculo estratégico errado ao atacar Pearl Harbour em dezembro de 1941, o mundo como conhecemos sequer teria existido, o centro de poder global seria entre Berlim, Roma e Tokyo ao invés de Washington, Londres e Paris e a guerra fria seria entre o Nazismo e o Comunismo.
O erro japonês custou a vitória ao eixo e deu origem ao mais novo empreendimento global para manutenção da paz em escala global. Ás Nações Unidas ou ONU surge em 1946 simultaneamente como uma substituição e evolução da Liga das Nações. O arranjo da ONU entendeu os erros da sua antecessora e estabeleceu duas arenas de discussão, a Assembleia Geral em que todos tem voto e representação e o conselho de segurança formado pelas potências vencedoras da segunda guerra mundial (Estados Unidos, Rússia,Inglaterra,França) além da China, todos eles possuem poder de veto. Dessa maneira a ONU não foi utópica em sua busca por igualdade, de forma bem consciente se percebeu que a igualdade levada ao extremo gera anarquia e incapacidade de atuação.
Desde a sua fundação a ONU e mais especificamente o conselho de segurança conseguiram impedir a eclosão de uma terceira guerra mundial, durante os anos de Guerra Fria, tanto Estados Unidos quanto a União Soviética usaram da sua prerrogativa de veto para moldar a disputa dos dois polos na segunda metade do século XX, a disputa entre as duas superpotências que dividiu o mundo em esferas de influência ocidentais e soviéticas acordada na conferência de Yalta (1945) chega ao fim com a queda do muro de Berlim, a unificação da Alemanha e inclusão da Rússia e das suas ex repúblicas soviéticas no mundo ocidental. A vitória americana na guerra fria levou a anos de otimismo e esperança de que em um mundo que testemunhou o Fim da História como sustentado por Francis Fukuyama. Disputas por poder eram coisa do passado, como a democracia liberal capitalista havia superado seus dois competidores, o Fascismo e o Comunismo. Não haveria mais tanta preocupação estratégica ou política, as Relações Internacionais seriam reduzidas a preocupações econômicas.
O 11/09 provou que Fukuyama estava errado e coroou Samuel Huntington que no espetacular Choque de Civilizações (1996) acabou por prever uma reação islâmica frente a existência de um único polo de poder global, no caso os Estados Unidos. Nesse período ficou bem claro que nem a maior nação do mundo estava segura em sua própria casa, a crença de que um país protegido por dois mares e com vizinhos aliados no norte e no sul jamais seria atacado se provou falsa e o ataque direcionado a um dos maiores marcos do capitalismo global anunciava tempos sombrios pela frente, o ocidente sofreu com ataques terroristas por basicamente duas décadas desde então mesmo após a morte de Bin Laden em 2011, surgiu o ISIS, ainda mais cruel e desumano.
Fizemos um breve passeio histórico por vários eventos que definiram a ordem global, a Revolução Francesa, ás Guerras Napoleônicas, a Primeira Guerra Mundial, a Segunda Guerra Mundial, a Guerra Fria, e o 11/09 detalhando quais foram suas causas e consequências, agora nos resta analisar o último desses eventos. A guerra entre Ucrânia e Rússia de 2022.
Ao longo desse passeio vimos como certos erros táticos custam muito caro em um contexto de guerra, Napoleão ao invadir a Rússia, A Alemanha ao desafiar o poderio britânico, o Japão ao atacar Pearl Harbour… Dessa vez o erro aparenta ter sido cometido por Putin, militarmente seu país caminha para uma derrota bem humilhante para um exército menos numeroso e pior equipado, o mesmo nível de humilhação que os Estados Unidos tiveram ao serem escorraçados no Vietnã, o presidente ucraniano se transformou em uma celebridade maior do que a própria vida, ovacionado por todos no ocidente, enquanto ele ficar vivo a Ucrânia não irá se render, e se for morto virará mártir. Instalar um governo fantoche também não irá funcionar com os ucranianos dispostos a lutar pelo seu país e impedir os planos expansionistas de Putin. As esperanças russas de uma Blitzkrieg não foram alcançadas. Putin compartilha com Napoleão e Hitler uma ambição muito clara de redesenhar o mapa geopolítico europeu para atender os seus interesses, e Putin conseguiu essa façanha, mas não do jeito que ele imaginava.
Putin tinha razões para acreditar que poderia sair impune dessa invasão, o ocidente parecia estar em declínio crônico, a ascensão de governos impossíveis de serem categorizados no espectro político em países como os Estados Unidos, o Brasil, a Polônia e a Hungria, e o Brexit teriam sido provas de uma desintegração dos valores e instituições liberais. Enfraquecidos pela divisão interna e o rancor ideológico entre conservadores e progressistas, além disso a saída desastrosa dos Estados Unidos no Afeganistão e os eventos da invasão do capitólio teriam revelado que os EUA seriam um poder em decadência. Esse raciocínio que deve ter sido a base usada por Moscou antes da invasão somado ao fato da Rússia não enxergar que a Ucrânia exista de fato e que ela nada mais é que parte da Rússia.
O erro mais grave de Putin foi dar ao ocidente um inimigo em comum, Putin em poucos meses conseguiu uma reversão política de 180° graus na Política Externa alemã, tradicionalmente relutante em se envolver em conflitos armados, pelas razões históricas mencionadas acima, anunciou que irá duplicar o seu orçamento de defesa, Biden em discurso apaixonado no State of The Union unificou republicanos e democratas e impôs sanções pesadíssimas ao setor energético russo, Boris Johnson que parecia estar com um pé fora de Westminster agora é aplaudido até por rivais políticos, Macron que poderia perder a reeleição para um candidato de viés nacionalista e eurocético desponta como franco favorito à reeleição. Quem também encontrou novo propósito foi a OTAN, que quase foi desmontada no governo Trump e hoje funciona como uma linha vermelha para às ambições expansionistas russas.
Publicamente Putin vem minimizando o impacto das sanções em sua economia, mas já enfrenta pressão das elites russas e dos militares para encerrar sua incursão militar. Por mais que Putin negue, a Rússia estava sim integrada a economia global, acabou expulsa do sistema global de pagamentos (SWIFT), suas indústrias, incluindo petróleo e gás, dependem de bens e componentes importados. Em breve a produção será interrompida, os empregadores forçados a demitir, o desemprego vai aumentar. Putin não esperava sanções tão pesadas assim, O banco central russo teve suas reservas bloqueadas, portanto é incapaz de gerar liquidez na economia, o rublo já entrou em colapso e as taxas de juros dobraram.
Na prática o que Putin conseguiu foi uma nova cortina de ferro separando a Rússia do mundo rico, uma Ucrânia ainda mais determinada em se juntar ao ocidente, uma derrota militar acachapante, uma OTAN com novo propósito e mais financiamento, e o ocidente esquecendo seus problemas internos para defender o seu modo de vida. Não é por acaso que na última rodada de negociações a Rússia apontou que deseja apenas proteger regiões que na prática já eram domínio dela como o Dombass. Economicamente a Rússia sai extremamente enfraquecida, militarmente com a reputação de um gigante com pés de barro, incapaz de exercer seu hard power pois os demais vizinhos já buscam o ingresso na OTAN para terem a proteção do artigo 5°, incapaz de exercer seu soft power pelo seu isolamento, e com um líder orgulhoso demais para buscar uma saída que não os prejudique tanto, a única coisa que resta para a Rússia é se aproximar da China, mas sem uma relação de igualdade entre às partes, e sim uma de suserania e vassalagem.
Referências Bibliográficas
CARR, H.Edward (1939). 20 anos de crise: 1919-1939. Brasília: Universidade de Brasília, IPRI/FUNAG, 2001.
FUKUYAMA, Francis. O Fim da história e o último homem, Rio de Janeiro: Rocco, 1992
HUNTINGTON, Samuel P. The clash of civilizations and the Remaking of world order: New York, Simon & Schuster, 1996
KISSINGER, Henry. Ordem Mundial : Rio de Janeiro, Objetiva, 2015
MEARSHEIMER, John. The Tragedy of great power politics. New York : W.W Norton & Company, 2001
SCRUTON, Roger. Conservadorismo: Um convite à grande tradição: Rio de Janeiro, Record, 2019