Vinte anos já se passaram desde o atentado ao World Trade Center patrocinado pela Al Qaeda de Osama Bin Laden. Muita coisa mudou nesses últimos 20 anos. O ataque as torres gêmeas mostraram ao mundo que ninguém estava seguro, tanto que a maior potência do mundo havia sido atacada em sua própria casa, em sua cidade mais emblemática. O 11 de Setembro foi o evento definidor da política internacional em nosso século, até o surgimento da pandemia do COVID-19.
Desde então o ocidente como um todo vem esperando por um milagre, pelo surgimento de um tipo de Martin Luther King no movimento islâmico, alguém capaz de pacificar internamente seus métodos e condutas. Esse mito da existência do Jihadista moderado foi alimentado mais uma vez após a desastrada saída do governo Biden do Afeganistão. Essa expectativa não irá se tornar realidade por um motivo muito simples quando se analisa com frieza os personagens envolvidos. Ao acompanhar o histórico dos movimentos ficará mais claro porque o paralelo esperado pelos governos ocidentais não faz sentido.
O movimento negro, ao menos aquele personificado por Martin Luther King, era um movimento que não buscava a destruição e a substituição de um modelo civilizatório ou cultural por outro, o que ele buscava era a inclusão, era se tornar parte desse modelo pré-existente. Conhecido por civilização ocidental. Isso significa dizer que, por mais que hoje, os líderes do movimento negro adotem uma postura de negação das suas origens, e de combate a tudo aquilo que o ocidente representa, que eles também fazem parte desse ocidente. Essa característica é primordial para entender o porque Martin Luther King teve sucesso em pacificar internamente o movimento negro nos anos 60.
No caso do fundamentalismo Islâmico não se trata de inclusão, trata-se da destruição da cultura ocidental impura e a substituição da mesma pelas leis religiosas adotadas pelo islã radical, não haverá internamente uma substituição de métodos ou condutas porque sua matriz de origem cultural é distinta.
Isso já havia sido observado pelo grande cientista político Samuel P.Huntington, um dos poucos autores que na euforia dos anos 90 pós queda do muro de Berlim e colapso da URSS não se enganou e previu em sua Magnum Ops , O Choque de Civilizações. Os próximos grandes conflitos não seriam bélicos ou motivados por modelos econômicos como o embate entre Capitalismo e Socialismo durante a Guerra Fria (1945-1991). Mas sim motivados pelos embates étnicos e culturais, impulsionados pela aceleração da integração das cadeias de produção e emprego globais associadas ao fenômeno da globalização. Durante a última década vimos um aumento do número de atentados terroristas na Europa Ocidental e também nos Estados Unidos. Mesmo após a morte de Bin Laden em 2011, a ameaça agora vinha da Síria, precisamente do Estado Islâmico que disputava o controle territorial do país com o presidente Bashar Al-Assad ( apoiado pela Rússia de Putin), Os Estados Unidos, na época governado por Barack Obama achou que o ISIS seria útil no combate geopolítico com Putin e acabou quebrando a cara, na época a política externa americana, era inclusive, chefiada por Hillary Clinton e seu desastre como secretária de Estado foi um dos motivos da vitória de Donald Trump em 2016.
O ISIS não chegou a ser derrotado formalmente, mas durante os anos Trump pouco se ouviu falar no grupo, a aliança não escrita entre Trump e Putin conseguiu reduzir suas posses territoriais e o grupo não conseguiu lançar ataques grandes e coordenados no ocidente como haviam feito até 2015.
Agora já com outro governo americano, liderado por Joe Biden.Outro evento potencialmente transformador da realidade geopolítica do oriente médio ocorreu, a saída do Afeganistão alguns meses atrás acabou por deixar um pouco mais claro que existe um tipo de estratégia de apaziguamento entre o ocidente e parte do movimento fundamentalista, é possível enxergar uma espécie de pacto de não agressão entre a atual Al-Qaeda e os governos ocidentais, vale lembrar que o evento de retirada das tropas levou o nome de retirada americana mas os soldados eram da OTAN, não apenas americanos, aliados de Washington também tinham tropas no local, o que se desenha aqui é que os governos ocidentais talvez tenham ofertado o Afeganistão para o Talibã em troca de uma certeza que tanto eles quanto a Al Qaeda iriam combater e impedir um ressurgimento do ISIS. É claro que nenhum dos dois lados vai confirmar isso oficialmente, pois as reações tanto internas quanto externas seriam um verdadeiro pesadelo de relações públicas.
Interessante notar que o ISIS só conseguiu a atenção do governo americano quando começou a divulgar no fim de 2014 e início de 2015 vídeos de assassinatos de ocidentais com produção digna de Hollywood, e uma máquina de propaganda azeitada que levou vários ocidentais a simpatizar pelos ideais fundamentalistas. Antes disso o ISIS já havia conquistado uma região com tamanho semelhante a França entre a Síria e o Iraque, mas não havia sido incomodado militarmente pelas forças ocidentais. Um padrão começou a ser desenhado a partir de então, as respostas mais enfáticas dos Estados ocidentais apenas ocorreram em face de ataques realizados na Europa e nos Estados Unidos. Esse pacto de não agressão construído pelos governos ocidentais e os grupos fundamentalistas que por acaso são rivais do ISIS tem apelo com certos grupos relevantes de produção de política externa na América, na Inglaterra e em todo o ocidente.
Ficou claro que o ocidente se cansou de desperdiçar vidas e dinheiro para defender locais longínquos e com baixa relevância estratégica, como o caso do Afeganistão nos ilustra, permitir então que os grupos rivais do ISIS tenham controle da região parece uma manobra de contenção de danos, uma estratégia ancorada em um acordo frágil, algo como “Não me ataque, que eu não te atacarei”. Por décadas grupos internos nos dois partidos americanos condenaram o intervencionismo americano e por isso essa política externa isolacionista parece ter emergido como vitoriosa. Marcando um traço de continuidade incômodo para Trump e Biden. Por mais que pareça fazer sentido esse acordo, ainda mais em um país que no momento se encontra polarizado, carrega nas costas vinte anos de guerra ao terror e tentativas fracassadas de Nation Building, existem razões para não ser tão otimista assim como esse pacto.
O ocidente parece ter subestimado os custos de longo prazo dessa barganha. Antes de tudo é difícil imaginar que esse acordo signifique o fim dos atentados terroristas no ocidente, nos últimos anos a grande maioria dos ataques foram cometidos por simpatizantes fundamentalistas com ligação somente ao ISIS que não fez parte do acordo, a Al Qaeda e o Talibã já não estavam atacando o ocidente antes desse acordo, outro ponto a ser levado em consideração é que não existem nessas células terroristas um controle hierárquico observável o que não dá a garantia que todas as células vão aceitar e respeitar os termos do acordo e não atacar o ocidente, outro erro é não entender que o grande motor de grupos terroristas é a propaganda, ao ponto que conforme for ficando mais claro que houve um acordo entre as partes , embora ninguém saiba exatamente todos os termos do mesmo, ficará mais fácil para o ISIS conseguir um crescimento das suas fileiras simplesmente ao apontar que os demais grupos fundamentalistas se desviaram do único caminho verdadeiro demonstrado pela Jihad, a partir disso o ISIS terá novamente a capacidade de realizar ataques de grande escala nos territórios ocidentais pois naturalmente as agências de inteligência estão contando com o acordo ser cumprido e com a capacidade dos demais grupos exercerem uma contenção satisfatória em relação ao ISIS.
Além disso, também haverá impactos internos na política ocidental, com a esquerda cada vez mais progressista e identitária será que esses políticos irão reagir bem perante acordos feitos com grupos fundamentalistas que utilizam práticas medievais contra mulheres, homossexuais e todo tipo de minoria? Por outro lado, os Neoconservadores irão acusar e terão vários argumentos plausíveis de que a política é mal desenhada e elege um inimigo ao esquecer todos os outros que ameaçam o modo de vida ocidental.
Esse pacto que teria sido feito pelos governos do ocidente e certos movimentos fundamentalistas mais uma vez explicita o maior erro cometido pelo ocidente desde o 11/09, a esperança de que surja pelas circunstâncias uma moderação interna nas ambições fundamentalistas, não vai haver e Huntington nos dá a resposta que isso é impossível e o motivo de não se poder basear sua política externa em uma expectativa, nem em um acordo tácito firmado com um inimigo, apenas se baseando que no momento os dois tenham um inimigo em comum.