“A soberba precede a ruína”, Provérbios 16:18-19.
Cito este versículo bíblico porque ele descreve, certamente, o desempenho de Donald Trump no debate de ontem contra Kamala Harris, na rede de televisão ABC News. Trump pareceu ir ao debate acreditando que enfrentaria uma candidata morta e desajeitada, uma cópia de Joe Biden, diferenciando-se apenas pela data de nascimento e o sexo. Círculos republicanos, em erros de cálculo, especulavam que Harris seria uma debatedora facilmente vencida devido ao seu péssimo desempenho nos debates das primárias do Partido Democrata na eleição de 2020, com direito a uma humilhação pública de uma ex-democrata e agora convertida a republicana, Tulsi Gabbard. Esqueceram que, quando uma candidata se torna a oficial de um partido, ela passa a lidar com um media training muito mais amplo, com preparações quase teatrais para eventos dessa magnitude e com roteirização de falas, nos pormenores, por gente que treina os melhores oradores do país, incluindo quem treinou o melhor orador entre presidenciáveis desde Reagan, no caso, falo de Barack Obama. A soberba subiu à cabeça, e Trump achou que seria fácil demais; para ele, foi difícil.
O debate se desenrolou em três temas principais: imigração, economia e aborto. No primeiro tema, Trump deveria ter nadado de braçada. Kamala foi designada por Biden, no início de seu governo, como responsável por lidar com as questões relacionadas à fronteira. E a gestão foi um desastre! Um contingente gigantesco de imigrantes cruzando a fronteira do México com os Estados Unidos, em níveis recordes, causou uma profunda crise no país. Para se ter ideia, em um dia, o Departamento Nacional de Segurança dos Estados Unidos registrou a travessia de 8.600 imigrantes pela fronteira com o México. Cidades como El Paso e Eagle Pass viram seus sistemas sobrecarregados. Estados como Arizona e Nevada, swing-states decisivos, foram impactados por essa crise, um momento oportuno para Trump frisar o desastre migratório do governo Biden e da responsável pela fronteira, Kamala Harris – apelidada no país de “Czar da Fronteira” – mas o que preferiu Trump? Preservou Kamala e passou a defender mentiras esdrúxulas que circulariam nos grupos de WhatsApp de nossas “tias do zap” no Brasil, como a de que imigrantes estariam comendo cachorros em Springfield, Ohio. Falarei posteriormente sobre a postura dos mediadores excessivamente pró-Harris, mas o fact-check nesse caso foi correto. Entretanto, não creio que seria necessário, pois é uma ideia tão estúpida que ninguém com níveis saudáveis de sanidade mental acreditaria. Enquanto isso, Harris levantava que uma proposta de reforma da questão imigratória foi enviada ao Congresso, mas foi barrada porque o partido republicano, que possui maioria na Câmara dos Representantes, foi supostamente pressionado por Trump a votar contra, pois o ex-presidente desejaria o “quanto pior, melhor” para vencer a eleição. Entretanto, este projeto foi lançado em ano eleitoral, no último ano de mandato de Biden, sendo que nos três anos de governo, a postura foi negligente ou até permissiva e de cumplicidade. Biden propôs, no início do governo, legalizar 11 milhões de imigrantes ilegais, um absurdo! Trump não soube explorar, perdeu uma oportunidade única, e a contradição apontada por Kamala pode colar. Trump perdeu esse debate, nem tanto pelos méritos de Kamala, mas por demérito próprio.
No tema economia, Trump ganhou por 1×0, em um jogo travado, de pouquíssimas finalizações, com gol aos 45 minutos do segundo tempo, mas o suficiente para vencer. Kamala buscou fazer um aceno às pequenas empresas americanas, e há lógica nisso, a mesma lógica da escolha do vice-presidente, Tim Walz. O Partido Democrata é, há muitos anos, visto como o Partido de Wall Street, dos grandes bancos, de Hollywood, das elites financeiras e predatórias e contrário ao que representa o americano comum, dos interiores do país. A escolha do vice, um treinador de futebol americano do interior de Minnesota, e o discurso pró-pequenos negócios busca conquistar esse eleitor que constitui a nova base do Partido Republicano, cada vez menos Orange County e cada vez mais Northampton County. É uma estratégia importante para ganhar a eleição e até mesmo de sobrevivência eleitoral democrata. Aqui, Trump teve uma postura mais altiva, focando principalmente na questão do fracking. Os Estados do chamado Rust Belt – o Cinturão da Ferrugem – são bastiões da indústria pesada americana e do petróleo. O faturamento hidráulico para extração de combustível fóssil corresponde a grande parte da classe trabalhadora americana. Trump buscou frisar a todo momento que Harris e os democratas desejam acabar com a prática do fracking, o que não é mentira; o ambientalismo radical e anti-industrialista é parte da base radical do Partido Democrata. É uma mensagem dirigida especificamente ao eleitor que votou nele em 2016 e pode ser bem-sucedida. Mas Trump, na economia, cometeu um erro ao não bater na tecla de que Harris é vice-presidente, e, portanto, coparticipante do desastre econômico de Biden. Trump falava da inflação alta, mas não frisou, não bateu na tecla continuadamente de que Harris é parte do governo Biden, ela é a vice. Em um determinado momento, Trump chegou a mencionar essa questão: “She is Biden.” Kamala respondia de forma a tentar se distanciar de Biden e de seu governo, como se ela não tivesse participado do governo e nem vice fosse. Trump precisava fincar o fato de que ela é a vice, e nos Estados Unidos, o vice-presidente possui um caráter muito mais participativo do que no Brasil, onde é mero cargo decorativo. Trump fez de Harris uma novata política; parecia, em determinado momento, que Harris entrou ontem no Partido Democrata, que ela não teve uma carreira política. Foi um erro primoroso! Trump também foi prejudicado pelos mediadores, que não produziram fact-checking quando Kamala falsificava dados sobre a economia de Joe Biden e até sobre Trump; o 3 contra 1 aqui ficou evidente. Trump venceu, por 1×0, quando era para golear.
No que tange o aborto, é preciso entender a sociedade americana. Os Estados Unidos são um país protestante, e a questão do aborto sempre foi uma problemática mais conectada com o catolicismo, embora a ampla maioria das denominações protestantes condene a prática. Portanto, países de tradição católica tendem a ter posições mais hostis à prática do aborto do que países de tradição protestante. Os Estados Unidos passam por um processo crescente de secularização. Há dez anos, aproximadamente 18% dos americanos não se vinculavam a nenhuma religião, identificando-se como agnósticos, ateus ou “sem preferência”. Em 2021, esse percentual subiu para 29%, representando um crescimento de 11%. O país tem se tornado cada vez mais urbano e progressista, e grande parte das pautas defendidas pela direita mais religiosa são amplamente impopulares, entre elas, oposição ao aborto e ao casamento gay. É um processo, como já vive todo o Ocidente, de afastamento de valores morais religiosos e conservadores, por uma postura liberal nos costumes, impulsionada principalmente por mulheres de classe média. A maior parte do eleitorado americano é a favor do aborto. Os democratas mobilizaram mulheres de classe média revoltadas com o fim do Roe vs. Wade, e os democratas quase venceram uma eleição de meio de mandato nos EUA, algo raríssimo de se acontecer. Podemos questionar, e o autor que vos escreve questiona, a degeneração moral da sociedade americana, cada vez mais hedonista, materialista e amoral. Entretanto, é um fato: a maior parte do eleitorado americano é a favor do aborto. Trump tem cada vez mais aderido a uma postura mais progressista no que tange o aborto e práticas como fertilização in vitro, tendo, inclusive, sinalizado oposição à lei antiaborto da Flórida, que protege o nascituro até a 6ª semana de gestação. Se formos falar em vitória aqui, do ponto de vista moral, nenhum dos candidatos saiu vencedor; do ponto de vista de convencimento aos indecisos, Kamala Harris. Atacou Trump, em um discurso deveras emocional, sobre sua culpa na derrubada do Roe vs. Wade, por ter nomeado juízes conservadores e formado maioria na Suprema Corte para derrubar a decisão histórica de 1973. Colocou Trump na defensiva quando afirmou que ele assinaria uma lei para proibir o aborto em todo o país, que Trump tratou de negar. Trump repetiu uma mentira no último debate de que bebês estavam sendo submetidos à execução após o nascimento. Ora, Trump, antes de fazer essa afirmação mentirosa, falou uma verdade, que os democratas apoiam abortos em qualquer fase da gestação, muitos deles, pelo menos, o que já é um absurdo gigantesco. Não era preciso soltar essa mentira para o tendencioso mediador fazer uso do fact-checking. Para o eleitorado, Kamala venceu, mas moralmente, perdeu. Porém, em eleições em sociedades degradadas moralmente, isso pouco importa.
É preciso ressaltar a postura ridícula dos mediadores David Muir e Linsey Davis. O uso de fact-checking exclusivo para Trump, enquanto Kamala falsificava dados sobre a economia do governo Biden, certos momentos em que Trump não mais debatia com Harris, mas com os mediadores; todas as perguntas para Trump eram em tom provocativo, quase um jogo de vôlei, em que os levantadores levantavam a bola para Harris cortar. A postura dos mediadores conta em favor de Trump, pois o descaramento do lado era evidente. A mídia americana é, em sua ampla maioria, democrata, mas mesmo assim, cabe um certo decoro jornalístico que a velha mídia vem perdendo continuadamente. Se no Brasil não se faz mais jornalistas como Paulo Francis, nos Estados Unidos não se faz mais jornalistas como Tom Wolfe!
Kamala venceu o debate muito pela soberba de Trump, que achou que já havia ganhado. Kamala pôs Trump na defensiva em diversos momentos, especialmente no que tange o aborto, e o superou na questão da imigração, por demérito do próprio Trump, e por fazer uma pergunta que ele não respondeu: por que o Partido Republicano não apoiou o projeto migratório de Biden? Havia espaço para resposta, Trump não respondeu. Num tema, Trump se saiu melhor: economia. E se James Carville estava certo: “É a economia, estúpido!”, toda a vitória de Kamala em outros temas pode não valer muita coisa.