A volta de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos tem gerado ondas de alarmismo e críticas exacerbadas na grande mídia e entre os círculos progressistas. Artigos dramáticos sobre o suposto avanço do “fascismo”, a “ameaça” à democracia e o populismo de extrema direita inundam as manchetes. Para muitos, Trump é visto como um perigo iminente para a democracia americana. Este artigo não pretende negar essa visão alarmista, mas sim, defender que ela pode ser verdadeira, mas sem cair em qualquer alarmismo, explorar por que essa narrativa ganhou força e como reflete uma crise mais profunda do sistema democrático liberal. Para entender esse fenômeno, é necessário revisitar algumas ideias fundamentais sobre a política moderna e traçar paralelos históricos, especialmente com a transição da República Romana para o Império.
A histeria em torno de Trump é, em grande parte, um reflexo da crença no chamado “fim da história”, proposto pelo cientista político Francis Fukuyama. Após a queda do Muro de Berlim e o colapso da União Soviética, Fukuyama argumentou que a democracia liberal representava o ápice do desenvolvimento político-histórico, um sistema perene e insuperável. No entanto, essa visão é ingênua e profundamente equivocada.
A democracia liberal não é o ponto final da evolução política, mas sim um sistema falho e imperfeito como todos os outros. Em primeiro lugar, apresenta-se como o auge da representatividade, mas, na prática, é menos representativa do que regimes anteriores – do Ancien Régime ao corporativismo orgânico da Idade Média. Naquela época, guildas, associações e outras formas de organização comunitária representavam diretamente os interesses específicos de seus membros, mediando a relação entre o indivíduo e o poder central. A sociedade moderna, por outro lado, é atomizada e fragmentada, com indivíduos desconectados de grupos comunitários. Os representantes eleitos lidam com uma ampla gama de interesses, muitas vezes negligenciando as necessidades locais e específicas.
Nos Estados Unidos, essa democracia não foi capaz de resolver os problemas da classe média branca empobrecida, que perdeu empregos para a globalização, pois está distante dela, baseando-se em uma representatividade de massas, e não em uma representatividade orgânica. O mesmo ocorre em outros contextos, onde as eleições periódicas e o sistema de partidos acabam por criar uma elite política distanciada das reais demandas da população. As campanhas eleitorais exigem financiamento robusto, favorecendo grandes doadores e corporações, o que compromete a autonomia dos representantes e os torna mais propensos a atender interesses econômicos do que os anseios populares.
Além disso, a democracia liberal se sustenta sobre uma ficção de igualdade política, na qual cada cidadão tem um voto, mas o impacto desse voto varia drasticamente conforme fatores como influência econômica, acesso à informação e poder de mobilização. Enquanto as instituições modernas promovem a ideia de participação universal, o processo de tomada de decisão continua concentrado em tecnocracias, lobbies empresariais e organismos burocráticos, que operam muitas vezes sem qualquer controle efetivo da população.
Outro aspecto problemático é a erosão da coesão social. Sem as antigas formas de associação que fortaleciam o tecido comunitário, o indivíduo moderno se vê isolado, dependendo exclusivamente do Estado e do mercado para garantir sua sobrevivência. A hiperindividualização característica das democracias liberais impede a formação de laços de solidariedade mais profundos, tornando a política uma disputa de interesses fragmentados em vez de um esforço coletivo para a construção do bem comum.
Portanto, longe de ser um sistema insuperável, a democracia liberal enfrenta desafios estruturais que evidenciam sua fragilidade. A incapacidade de garantir uma representatividade autêntica, aliada à concentração de poder em elites político-econômicas e ao esvaziamento das formas comunitárias de organização, coloca em xeque sua legitimidade como modelo definitivo de governança.
Além disso, a democracia liberal concentrou poder em um aparato burocrático centralizado, algo que nenhum rei absolutista jamais sonhou. Na Idade Média e no Ocidente pré-liberal, existiam sistemas como os fueros na Espanha e o direito consuetudinário, que garantiam certa autonomia local. Na democracia liberal, porém, a legislação é centralizada e abrangente, sufocando a subsidiariedade e a diversidade de interesses locais.
A crença na perenidade da República americana e na vitória definitiva da democracia liberal guarda paralelos com Roma, onde a República foi idealizada como o modelo político definitivo. Durante 482 anos, a República Romana foi celebrada por historiadores como Tito Lívio e filósofos como Cícero, que a viam como um sistema capaz de resistir às corrupções do tempo. No entanto, a República caiu, dando lugar ao Império. Os que acreditam no mito de Fukuyama caem no mesmo equívoco apologético de Cícero.
A queda da República Romana não ocorreu de maneira abrupta, mas foi resultado de um longo processo de erosão institucional, corrupção sistêmica, conflitos internos e crises sucessivas. A instabilidade política abriu espaço para figuras carismáticas que desafiaram o status quo, sendo Júlio César um dos mais emblemáticos. Como líder populista, ele questionou as elites senatoriais e apresentou-se como o restaurador da ordem em meio ao caos. Seus discursos contra a corrupção e a oligarquia chocaram a aristocracia romana, que temia perder sua influência. A resposta do establishment senatorial foi extrema: o assassinato de César, perpetrado sob a justificativa de preservar a República. No entanto, em vez de salvar o sistema republicano, sua morte apenas acelerou a transição para o Império, culminando na ascensão de Otávio Augusto, que consolidou um novo modelo político.
Esse fenômeno histórico oferece um paralelo intrigante com o cenário contemporâneo dos Estados Unidos. As tentativas de assassinato contra Donald Trump, a demonização de sua figura pela mídia e a retórica política que o pinta como uma ameaça à ordem democrática refletem, em muitos aspectos, a postura do establishment senatorial romano diante de César. O horror que Trump desperta nas elites políticas e midiáticas leva a um ambiente de tensão crescente, onde discursos inflamados, acusações constantes e até mesmo sugestões implícitas de violência tornam-se comuns. Assim como no caso romano, a supressão de um líder populista pode não significar a preservação do sistema, mas sim sua transformação em algo novo e, talvez, irreversível.
Essa irreversibilidade já é percebida por boa parte do povo americano. Há uma crescente sensação de que a democracia liberal chegou ao seu limite. A ascensão de Trump e o movimento que o cerca refletem um descontentamento profundo com o sistema atual. Neorreacionários como J.D. Vance, Peter Thiel e Curtis Yarvin, que hoje compõem o núcleo intelectual por trás desse novo mandato de Donald Trump, desenvolveram um conceito em suas teorias políticas chamado Cathedral. Diferente de um governo autoritário tradicional, a Cathedral não é um órgão centralizado, mas sim um sistema de influência cultural e política exercido por elites intelectuais e midiáticas. A mídia e as universidades definem quais ideias são aceitáveis e quais devem ser rejeitadas, moldando a opinião pública sem necessidade de coerção explícita. Professores formam novos professores, jornalistas formam novos jornalistas, criando uma cadeia de transmissão ideológica que garante a continuidade do sistema. A Cathedral marginaliza visões políticas divergentes, especialmente as conservadoras e reacionárias, rotulando-as como retrógradas ou imorais.
Os paralelos com Roma são evidentes. Assim como a República Romana entrou em decadência devido à corrupção interna, fragmentação social e ameaças externas, os Estados Unidos enfrentam desafios semelhantes. A ascensão da China como potência global, o fortalecimento da Rússia e as divisões internas causadas pela cultura woke fragilizaram o tecido social e político americano. A Cathedral teorizada pelos neorreacionários está em crise. Nesse contexto, a figura de um líder cesarista, como Trump, surge como uma resposta a essa crise.
A democracia liberal não é um sistema perene, assim como a República Romana não foi. Ela é um constructo humano, sujeito às mesmas falhas e limitações que qualquer outro regime político. A sacralização da democracia como valor eterno é um erro que ignora a natureza dinâmica e mutável da história. Assim como a República Romana deu lugar ao Império, é possível que a democracia liberal esteja caminhando para seu fim.
O futuro dirá se os Estados Unidos seguirão o caminho de Roma, transitando de uma república frágil para um novo sistema político. Mas uma coisa é certa: não adianta, por exemplo, uma figura como Alexandre de Moraes no Brasil aplicar o Direito Penal do Inimigo, recorrer à chamada “democracia militante” – utilizando métodos heterodoxos para tentar proteger a democracia e torná-la perene – ou lançar mão de qualquer outro expediente, legal ou ilegal, para preservá-la. Se a República Romana, que se manteve por quase 500 anos e levou homens como Cícero a crer em sua perenidade, caiu no auge de um populista com certo grau de brilhantismo, não será a democracia liberal, com suas profundas contradições – como a já citada representatividade –, que estará livre desse infortúnio. Se o curso da história aponta para a derrocada da democracia liberal e o ressurgimento da ideia de um império propriamente dito, isso acontecerá, e o mundo ocidental terá que se adaptar.