Passadas as eleições americanas do último 5/11 que consagraram uma vitória acachapante de Donald Trump (republicano) que já tinha sido prevista por mim em artigo publicado no dia 15/07 aqui mesmo no Hermenêutica Política. (https://br.hermeneuticapolitica.com.br/politica-internacional/a-politica-precisa-voltar-a-ser-entediante/). Pra quem não quiser ler todo o artigo que foi publicado logo após a tentativa de assassinato que Trump sofreu durante um comício. Meu argumento foi de forma simplificada que não se pode humanizar o monstro.
Devido aos interessantes resultados das últimas eleições, nem tanto pelo resultado final da vitória do Republicano mas o como isso ocorreu, e o tamanho da vitória dos republicanos e da derrota dos democratas, irei abordar numa sequência de artigos vários elementos das eleições americanas desse ano, o primeiro artigo irá tratar de quais foram os erros da campanha democrata, o segundo artigo irá tratar dos acertos da campanha republicana, e o terceiro artigo sobre quem foi o perdedor secreto dessas eleições e o impacto disso para o futuro, o artigo sobre a vitória de Trump virá depois do artigo sobre a derrota de Kamala Harris (democrata) por um motivo extremamente relevante.
A Ciência Política consagra o princípio da vantagem do incumbente, esse princípio estabelece que na maioria das situações, quem está no poder, se puder disputar ás eleições irá vencer. Nos Estados Unidos apenas Jimmy Carter (democrata) em 1980. George H.W.Bush (republicano) em 1992 e o próprio Donald Trump (republicano) em 2020 haviam sido derrotados até então, Kamala Harris como herdeira da candidatura de Joe Biden se junta a lista. Marcando um evento único na história em que dois presidentes de apenas um mandato ocorreram sucessivamente e de partidos diferentes.
Existem elementos para argumentar que a derrota de Harris tenha sido a mais feia de todas essas, Jimmy Carter sofreu o impacto direto do segundo choque do petróleo em 1979, a Revolução Iraniana que culminou na deposição do Xá Reza Phalavi, o fim da monarquia e a instituição de uma teocracia fundamentalista islâmica no país elevou o preço do petróleo de 13 para 34 dólares em 1980, o ano em que ele concorreria à reeleição, e para piorar seu adversário era um líder diferenciado, e até hoje amplamente considerado um dos melhores senão o melhor presidente da história dos Estados Unidos. Ronald Reagan.
George H.W.Bush foi derrotado após 12 anos ininterruptos com os republicanos no poder, uma vez que ele não só sucedeu Reagan como era o seu vice-presidente, desde a inclusão da vigésima segunda emenda na Constituição Americana em 1951. “Seção 1. Nenhuma pessoa será eleita para o cargo de Presidente mais de duas vezes, e nenhuma pessoa que tenha ocupado o cargo de Presidente, ou atuado como Presidente, por mais de dois anos de um mandato para o qual outra pessoa tenha sido eleita Presidente, será eleita para o cargo de Presidente mais de uma vez.”
A vigésima segunda emenda limita em dois mandatos consecutivos ou não a quantidade vezes que alguém poderia ser o presidente dos Estados Unidos, foi uma emenda que surgiu como uma reação republicana em reação aos quatro mandatos consecutivos do democrata Franklin Delano Roosevelt entre 1933 e 1945. Os 12 anos garantidos por Reagan e Bush pai nunca ocorreram após o surgimento dessa emenda, portanto quando foi derrotado por Bill Clinton em 1992 era de certa forma uma derrota esperada, fruto de um cansaço natural com o partido no poder e necessidade do próprio sistema democrático americano pela alternância de poder.
Trump em 2020 teve que lidar com a maior crise sanitária do mundo desde a Gripe Espanhola ainda na primeira metade do século XX, sua resposta a mesma foi um completo desastre, o que minou sua popularidade e criou uma tendência, o único chefe de Estado reeleito na pandemia e no pós-pandemia foi Emmanuel Macron na França.
Kamala Harris não tinha tantos elementos com interferência direta no pleito jogando contra a sua candidatura quanto os outros três presidentes que foram derrotados na busca pela reeleição e ainda assim levou para casa uma derrota acachapante, isso ocorreu por uma série de fatores, mas ainda dentro da própria construção teórica da vantagem do incumbente, elementos que a possibilitam foram escalonados para baixo devido ao fator de Kamala enfrentar alguém que já foi presidente e não um nome que nunca esteve lá. “As pessoas votam também com base no passado (retrospective vote)” ( GIANTURCO, 2018, p 314). Comparações favoreceram Trump, ainda que não se possa ignorar o contexto amplo da Inflação pós-pandemia, que ocorreu no mundo todo e por isso mesmo vitimou a ampla maioria dos incumbentes, outro elemento interno é o “Cautious Voter”. Kamala apesar de ser incumbente não era Joe Biden, portanto a incerteza sobre o que ela poderia fazer no cargo era maior do que a incerteza em relação a Biden, que iria ter o voto cauteloso a seu lado, e também em relação a Trump, que já foi presidente, o eleitor sabia o que estava comprando e não mergulhando no escuro.
De acordo com a Ciência Política quando a situação é derrotada pela oposição em uma disputa majoritária e em especial no presidencialismo, que possui um desenho mais estável que o semi-presidencialismo ou o parlamentarismo, é muito mais um demérito interno do que um mérito especial do oponente, ainda mais após a tentativa de assassinato de Trump que o permitiu basicamente jogar parado. Esse é o motivo que explica porque o texto sobre a derrota de Kamala vem antes do texto sobre a vitória de Trump.
Seguindo adiante para entender porque Kamala perdeu fundamentalmente precisamos entender porque Joe Biden venceu e para onde foram os mais de 12 milhões de votos que separaram o desempenho dos democratas nas duas últimas eleições. Aqui adoto uma visão contra majoritária dos analistas tanto a direita quanto à esquerda, acredito que Joe Biden teria tido um desempenho significativamente melhor do que Kamala Harris.
Não seria o suficiente para vencer ás eleições para a presidência, insisto mais uma vez que após a tentativa de assassinato não havia nada que os democratas pudessem fazer para mudar o resultado, mas seria possível estancar a sangria, Biden conseguiu liderar os democratas para vencer a disputa pelo senado nas eleições de meio de mandato em 2022 em um cenário inesperado. Como as eleições são não coincidentes, o normal é que o eleitorado americano divida o poder, tanto que a maioria dos analistas apostavam numa onda vermelha em 2022 e erraram.
Um cenário com Trump presidente controlando o judiciário e o legislativo é bem diferente de um cenário com Trump presidente sem a câmara e o senado. Acredito que Biden teria conseguido manter ao menos uma das duas casas legislativas para os democratas. O que equilibraria o jogo em Washington e forçaria Trump a pelo menos tentar se comportar como um republicano normal.
Joe Biden vence ás eleições em 2020 para coroar uma brilhante carreira política foi senador por seis mandatos consecutivos, chefiou comissões importantes como a de Política Externa e a Judiciária, como vice-presidente foi instrumental no período que Obama foi presidente em especial pela sua capacidade de trânsito no congresso e amizade com vários republicanos. Foi Biden que desbloqueou várias vezes obstruções feitas pelos republicanos e que encerrou shutdowns. Esse breve currículo serve para explicar que Biden tinha conquistas, histórico, peso e era um nome admirado e respeitado pela ampla maioria da população americana. Caso sua saúde física e mental não tivesse deteriorado a olhos vistos, Biden se tornaria ao lado de Harry Truman, John Kennedy e Bill Clinton um dos melhores presidentes da história do partido democrata e da história dos Estados Unidos.
O que Kamala tinha para mostrar de realizações, de sucessos, de história? Fora seu passado como promotora e uma péssima condução sobre a questão migratória que foi confiada por Biden ela não tinha nada para mostrar, e para piorar ninguém sabia exatamente o que ela tinha como propostas, e o que ela realmente defendia.
Uma estratégia muito bem conduzida e defendida por Joe Biden foi o de buscar o voto conservador do republicano tradicional insatisfeito como o Trumpismo. Biden vence no Arizona e em Nevada com esse público consegue o endorsement oficial do ex-presidente George W.Bush e de várias revistas acadêmicas de viés explícito conservador, Kamala tentou reproduzir a estratégia se aproximando da família Cheney mas não conseguiu nada oficial e público de Bush. Essa estratégia funcionou para Biden por dois motivos.
A interpretação mais aceita filosoficamente sobre o Conservadorismo é uma combinação da interpretação de dois gigantes da filosofia política do século XX. Russell Kirk e Samuel Huntington. A de que ele é essencialmente uma rejeição ao radicalismo e ao domínio das ideologias sobre a política. Huntington em influente artigo de 1957 estabelece que o Conservadorismo funciona como ponto médio aristotélico. Um necessário ponto de equilíbrio e prudência entre aqueles que empurram a sociedade para o passado (reacionários) e aqueles que empurram a sociedade para o futuro (liberais, marxistas e progressistas). Kirk irá rejeitar a ideologização da Política e até mesmo disputar a noção que o conservadorismo é em si uma ideologia, preferindo classifica-lo como um estado de espírito ou modo de vida.
Essa definição do conservadorismo nos ajuda a entender porque muitos republicanos apoiaram Biden contra Trump em 2020, o primeiro mandato de Trump foi marcado por inúmeras políticas que fugiram da ortodoxia republicana e que atentavam contra o princípio da Prudência imortalizado por Kirk. Biden durante toda a carreira foi um político de centro, um moderado que neutralizava o radicalismo populista de Trump.
Biden conseguiu convencer o eleitorado americano de que não se tratava de apenas mais uma eleição, mas “DA” eleição que definiria toda a história dos Estados Unidos dali em diante, o seu discurso sobre os riscos e perigos para as instituições americanas que Trump representava inquestionavelmente funcionou muito bem, sem esquecer é claro, do impacto da pandemia na popularidade de Trump.
O mesmo não pode ser dito de Kamala Harris e é por isso que sua tentativa de cortejar republicanos insatisfeitos falhou miseravelmente, Harris é uma legítima representante do que existe de pior no partido democrata, a ala progressista radical, popularmente conhecida como ala Woke.
Os wokes são responsáveis por políticas sociais e criminais que empurraram os Estados Unidos para um nível de violência que não fazia parte do cotidiano de um país desenvolvido, descriminalizações de todos os tipos de drogas sintéticas, movimentos para retirar fundos das polícias, a Califórnia chegou a descriminalizar furtos abaixo dos 1000 dólares e ver suas principais cidades serem afetadas no turismo, no consumo e na viabilidade de se viver lá. Como diz um amigo meu, quando a bigorna da realidade se impõe, nenhuma ideologia resiste. A mesma Califórnia promoveu uma revisão da sua legislação nessas últimas eleições. Existe uma razão para Trump ter quase vencido na Virgínia, e reduzido muito a distância em Nova Iorque e na Califórnia.
Kamala só chegou a ser convidada para compor a vice-presidência por Biden devido a uma histeria coletiva que tomou conta dos Estados Unidos naquele em relação a uma ação policial em Minneapolis. Que o policial usou força excessiva no caso George Floyd é óbvio, assim como é óbvio que uma maçã podre não contamina todo o cesto. Kamala só chegou até a vice-presidência por uma lei de cotas que o próprio partido democrata se impôs que focou tanto em minorias que esqueceu da maioria da população.
O pós-modernismo Woke não opera na mesma lógica das ideologias tradicionais, de acordo com Bauman (1998) ele rompe com o status ontológico realista existente tanto no liberalismo, no marxismo e no conservadorismo, se a realidade não existe logo se deve criar novas realidades, por mais absurdas e utópicas que pareçam em um exame racional, está aí outra ruptura do pós-modernismo, ele nega o racionalismo conforme exposto por Coulon (1995). Sua existência não está ligada a algo perceptível dentro dos outros sistemas ideológicos como a luta de classes e a revolução proletária para os marxistas, a defesa do capitalismo e da inovação para os liberais ou a proteção da ordem social e moral para os conservadores.
A ideologia Woke se sustenta na máxima “dividir para conquistar” elevada a décima quinta potência, novas minorias precisam sempre serem criadas ainda que artificialmente para que a ideologia permaneça de pé, porém o facilmente observável é que isso alcançou proporções absurdas ao ponto de que reprovar qualquer atitude realizada por uma mulher se tornou machismo, criticar um jogador de basquete negro se tornou racismo, e até mesmo criticar personagens no cinema e na TV virou sinônimo de fascismo. A falta de cuidado com os conceitos é outra característica dos Woke.
Com essa bagagem tanto teórica quanto prática se percebe que era impossível Kamala Harris conseguir se vender como uma democrata da ala moderada que Joe Biden genuinamente pertencia. Quando teve a chance de afastar sua imagem de Woke Kamala escolheu o vice errado na figura do governador de Minnesota Tim Walz, quando o governador da Pensilvânia Josh Shapiro estava disponível, racionalmente o cálculo não fazia sentido algum, Walz era de um estado tradicionalmente azul que iria eleger Harris de todo modo e apelava ao mesmo tipo de eleitor que Kamala. Shapiro era do estado que todos os analistas concordavam que seria o fiel da balança das eleições e traria um outro tipo de eleitorado… Mas Shapiro acabou sendo preterido por… seu compromisso com a defesa de Israel o segundo maior aliado dos Estados Unidos.
Quando confrontados com a escolha de um radical com um moderado, os republicanos anti Trump fizeram a escolha certa, mas num cenário de confronto entre dois radicais, a lógica prevalecente foi… Se vai ganhar um maluco, que seja o maluco que em tese está do meu lado ou ainda nem apareceram lá para votar. O que nos leva diretamente ao ponto mais importante da derrota de Kamala Harris.
Os Estados Unidos são um país que o voto não é obrigatório, é necessário mobilizar o seu eleitorado, as suas bases para ir votar, muitos segmentos que fecharam com Biden ou pularam a cerca e foram com Trump ou nem apareceram para votar. Os sindicatos, as classes industriais e trabalhadoras, a classe média-baixa… Todos andaram com Biden em 2020 porque ele entendia as demandas do americano médio e captou a insatisfação que havia naquele momento com Trump. Mas o fenômeno não se repetiu, nem mesmo nas bases históricas dos democratas porque o único discurso que Kamala tinha era: “vamos eleger a primeira mulher, negra e de descendência asiática para a presidência”.
Retomando o ensinamento do grande mestre florentino Nicolau Maquiavel. O Príncipe deve possuir Virtú e saber lidar com a Fortuna… Kamala não tinha uma e não soube lidar com a outra.
Referências Bibliográficas
BAUMAN, Zygmunt. O Mal estar da Pós-Modernidade. Rio de Janeiro. Editora Zahar. 1998
COULON, Alain. A Escola de Chicago. Campinas. Papirus. 1995
GIANTURCO, Adriano. A Ciência da Política. Rio de Janeiro. Grupo GEN. 2018
HUNTINGTON, Samuel P. Conservatism as an ideology. The american Political Science Review. Vol. 51, N 2. 1957, Pp 454-473
KIRK, Russell. A mente conservadora: De Edmund Burke a T.S.Elliot, São Paulo. É Realizações 2020.
MAQUIAVEL. Nicolau. O Príncipe. São Paulo. Hunterbooks. 2011
The Constitution of United States of América< https://constitution.congress.gov/constitution/amendment-22/ > Acesso em: 10/11/2024.