Durante alguns meses amigos e leitores do site me perguntaram constantemente sobre alguns tópicos relacionados ao papel dos Estados Unidos no mundo, o impacto que as suas eleições presidenciais viriam a ter, e se é verdade que a américa entrou em declínio e a ascensão chinesa como maior potência global é inevitável. Com esse artigo planejo oferecer a resposta para todas essas perguntas e desde já agradeço a colaboração dos amigos Guilherme Barreto, Pedro Figueiredo e Wagner Constâncio que em constantes conversas sobre os temas me motivaram a ter respostas quando ninguém parecia ter.
Poucas coisas são tão importantes no mundo político quanto as eleições dos Estados Unidos da América, na última terça-feira os americanos escolheram o seu próximo presidente e a composição das suas casas legislativas e independentemente do resultado de quem irá ocupar o salão oval, uma vez que vários processos de recontagem estão em curso, e existe até a possibilidade de uma intervenção da suprema corte federal. Neste sentido, podemos dizer que as duas forças políticas majoritárias (democratas e republicanos) estão cada uma a sua maneira, com graves problemas internos.
Começarei tratando da crescente rivalidade geopolítica entre a China e os Estados Unidos, independentemente de Trump ou Joe Biden tomarem posse em 20 de janeiro, é improvável a China encontrar um ambiente que propicie o seu crescimento rumo a hegemonia global, pois, antes da divisão entre democratas e republicanos, existe o interesse nacional dos Estados Unidos da América, e esse interesse com certeza não é perder o posto de maior potência no mundo. Isso pode ser explicado pelas duas maiores perspectivas teóricas das Relações Internacionais, as teorias realista e liberal, cada uma a sua maneira apontam para a proeminência dos Estados Unidos no sistema internacional de Estados.
Partindo da perspectiva realista, é incoerente apontar a China como o país mais poderoso do mundo, basta comparar os gastos com defesa de cada um dos países no ano de 2020. Os Estados Unidos gastaram 750 bilhões de dólares enquanto a China gastou 237 bilhões. A diferença é assustadora e representa bem o porquê da superioridade americana, também do ponto de vista realista se deve notar a capacidade de geração de hegemonas regionais que os Estados Unidos possuem, Brasil na américa do Sul, Inglaterra na Europa, Israel no oriente médio e Arábia Saudita no golfo pérsico. Dentro da perspectiva realista, o hegêmona global cria esses hegêmonas regionais para não precisar estar fisicamente presente em todos os cantos do mundo. É uma forma de proteção e economia como aponta John Mearsheimer na obra A Tragédia da Política das Grandes Potências (2001)
A China também consegue projetar o seu poder para fora da Ásia, mas numa escala bem menor de importância dos seus aliados, e dada a sua localização geográfica divide fronteira com a Rússia que atualmente é a segunda maior potência militar do mundo apenas atrás dos americanos, isso torna russos e chineses o que se chama na Geopolítica de rivais naturais, a rigor isso quer dizer que a perda de poder de um é ganho de poder do outro. Sob a liderança de Xi-JingPing a China tem sim tomado atitudes imperialistas como a revogação do status especial de Hong Kong e as constantes ameaças de invasão de Taiwan
Diplomaticamente Estados Unidos e Europa não se mexeram de forma enfática com relação a isso e nem a Rússia, por entender que se trata de um acordo informal entre as grandes potências para que nenhuma interfira na zona de influência da outra. Portanto sob o ponto de vista realista não é provável uma grande guerra nos próximos anos que iria dragar as principais nações do mundo para a chamada armadilha de Tucídides (quando a potência emergente desafia a atual para saber quem é mais poderoso). A China não começaria uma guerra que fosse perder, os Estados Unidos são claramente superiores em poder terrestre e aéreo e isso considerando hipoteticamente uma guerra direta somente entre os dois, sem colocar os poderes combinados da Europa e da Rússia.
Por outro lado a teoria liberal aponta que a superioridade americana vem de seu próprio conjunto de valores e símbolos, o que estudiosos das Relações Internacionais chamam de Soft Power. Dentre as 20 melhores universidades do mundo os Estados Unidos possuem 14 sendo que do top 5 possuem 4. Nenhum jovem quer estudar em Pequim, mas todos sonham com Harvard ou Yale, A China também não possui nenhum colosso do entretenimento como Hollywood é. Sem falar no seu pouco transparente sistema interno, a China não é uma democracia. Isso tudo na ótica liberal limita a capacidade da China de realmente ser o país mais relevante do mundo.
Aqui vale uma pequena volta ao passado, estudiosos das Relações Internacionais, economistas e historiadores escutam pelo menos desde os anos 50 sobre o suposto declínio dos Estados Unidos. Um dos maiores economistas do século XX, o americano Paul Samuelson afirmou que a URSS superaria o PIB americano em 2012… o economista faleceu em 2009 e a previsão nunca se concretizou… Os Estados Unidos suportaram muita coisa e sempre se tornaram mais fortes, vai aqui uma breve lista de eventos que poderiam facilmente implodir uma nação que não fosse menos especial. Guerra de Secessão (1861-1865) o assassinato de Abraham Lincoln (1865) a primeira guerra mundial (1914-1918), o Crash de 1929, a segunda guerra mundial (1939-1945), a Guerra do Vietnã (1955-1975), a Crise dos Mísseis em Cuba (1962) o assassinato de JFK (1963), a morte de Martin Luther King (1968), o escândalo de Watergate (1974) o atentado a Ronald Reagan (1981), os ataques ao World Trade Center em 2001, a crise dos sub prime (2008) e agora a pandemia do vírus chinês…
Se casos assim acontecessem com outros países, ao menos deixar de ser uma potência facilmente seria um resultado possível, mas estamos falando dos Estados Unidos da América, nenhum autor captou tão bem a essência e excepcionalidade americana quanto o historiador e filósofo político francês Alexis de Tocqueville. Cuja obra Da democracia na américa serve ainda hoje como um guia de como criar uma grande nação ancorada nos princípios republicanos da separação dos poderes, livre mercado e limitação da capacidade de influência do Estado.
“ As paixões que agitam mais profundamente os americanos são as comerciais, não as políticas; ou, antes, eles transpõem à política os hábitos do negócio. Gostam da ordem, sem a qual os negócios não poderiam prosperar, e apreciam particularmente a regularidade dos costumes, que funda as boas casas; preferem o bom senso que cria as grandes fortunas ao gênio que não raro as dissipa; as idéias gerais atemorizam seus espíritos acostumados com os cálculos positivos e entre eles a prática é mais estimada que a teoria. É à América que se deve ir para compreender que força exerce o bem-estar material sobre as ações políticas e até sobre as opiniões mesmas, que deveriam submeter-se tão-só à razão” (TOCQUEVILLE, 2005,Página 335)
A forma como a américa organiza sua vida política, econômica e jurídica foi o que a permitiu no século XX desbancar a Europa ocidental e se tornar o centro do mundo em basicamente todos os aspectos materiais e ideológicos, e todos esses feitos foram alcançados independentemente de um republicano ou um democrata ocupar a cadeira mais pesada do mundo. Portanto é no mínimo razoável crer que os Estados Unidos não vão simplesmente entregar as chaves do mundo para a China como alguns imaginam, especialmente no Brasil país que dada a super representação de uma minoria barulhenta marxista adota em sua retórica um grande anti americanismo mas que nos seus hábitos é a nação mais americanista de todas, do jeito de se vestir, a alimentação e o entretenimento.
Muitos marxistas brasileiros criam a narrativa de que a China irá tomar o poder global sem nenhum tipo de resistência seja européia ou americana, vibram de felicidade com um suposto e inexistente “mundo pós-ocidental”… Um dos maiores incentivos para se estudar a história é saber que entendendo o passado se ganha uma capacidade maior de prever o futuro. Aguardo ansioso pelo próximo Paul Samuelson.
Saindo das relações internacionais agora me concentro na política interna americana, vários artigos vem aparecendo na internet sobre o porque Donald Trump perdeu as eleições, a grande maioria deles acerta em uma questão, a pandemia do novo corona vírus foi quem possivelmente negou um segundo mandato ao republicano, tanto republicanos quanto democratas sabem muito bem que sem pandemia Trump não perderia os estados do cinturão da ferrugem e estaria comemorando sua reeleição nesse momento, o maior cabo eleitoral democrata foi o vírus, como postura prudente não vou declarar que a eleição já acabou, embora seja estatisticamente improvável que todos os pedidos de recontagem e decisões judiciais favoreçam Donald Trump.
A economia americana foi destruída pela pandemia, em questão um mês o desemprego quase atingiu os níveis da grande depressão dos anos 30 e era inevitável que Trump saísse ileso disso, ainda poderia vencer a reeleição mas com margem menor do que a conquistada contra Hillary Clinton em 2016. Trump que entrou em 2020 como franco favorito independentemente do adversário viu seu maior feito, os melhores resultados econômicos da história dos Estados Unidos ser completamente dizimado pelo vírus chinês.
Mas todos os analistas se esqueceram de dois pontos fundamentais que podem ter custado a reeleição a Donald Trump, o primeiro é que o partido republicano não estava unificado sob a sua liderança, como todo populista Trump priorizou a aliança com o povo e não com as elites políticas, um erro estratégico enorme, ainda mais num país que adota o voto indireto, sua rusga com o finado ex senador John McCain foi um dos motivos de ter perdido o Arizona, reduto tradicionalmente republicano e com 11 votos no colégio eleitoral. A falta de apoio da família Bush por muito pouco não custou o Texas outro reduto tido como certo pelos republicanos.
Eu mesmo em artigo escrito em setembro de 2019, bem antes da pandemia, (https://hermeneuticapolitica.com.br/decifrando-a-politica-externa-de-donald-trump-e-o-erro-que-pode-custar-a-reeleicao/) apontei como a demissão de John Bolton poderia custar ao republicano a reeleição. Com a demissão de Bolton, Trump perdeu de forma definitiva a ala neoconservadora do partido. No mesmo artigo apontei que caso Biden fosse vencedor das primárias democratas, provavelmente ele venceria e com o apoio de parte dos republicanos.
Isso se consolidou com a recusa de vários importantes ex-secretários e funcionários das administrações Reagan e Bush em declarar apoio para a reeleição de Trump, e isso também se consolida no presente momento, ao olhar os resultados das eleições de forma ampla se nota que a derrota de Trump irá mascarar um desempenho pífio dos democratas, mais sobre isso quando comentar a cerca dos problemas internos daquele partido.
Outro ponto que pode ser apontado como uma deficiência da presidência Trump, foi a falta de validação intelectual para os seus atos, praticamente todos os presidentes republicanos tinham grandes intelectuais de grandes universidades oferecendo constante validação e coesão para a sua presidência, apenas para ficar na história recente Nixon tinha Henry Kissinger, um dos maiores internacionalistas da história, Reagan tinha Milton Friedman, talvez o economista mais influente da última metade do século XX, Bush tinha Irving Kristol, criador da corrente Neoconservadora e mentor da doutrina Bush de política externa. Trump não contava com nenhum intelectual brilhante a seu lado que pudesse oferecer essa validação.
E mesmo assim, com todos esses problemas, Donald Trump conseguiu a segunda maior votação da história dos Estados Unidos, até o momento mais de 71 milhões, mais do que Barack Obama e mais do que Ronald Reagan, tido pela maioria dos americanos como o melhor presidente da história do país. Essa votação massiva irá se tornar um problema cedo ou tarde para o partido republicano, existem dois caminhos que podem ser seguidos e os dois envolvem trade offs. O primeiro é que Trump já desponta como o favorito a vencer as primárias republicanas para 2024 caso sua derrota seja de fato confirmada, e pode muito bem tentar uma “RessurectionRun” (corrida de ressureição), Trump perdeu, mas o Trumpismo não. O partido republicano pode abraçar o trumpismo populista e se aproveitar que Trump conseguiu partes do eleitorado democrata para os republicanos (minorias) ou pode abandonar o trumpismo eolhar para o partido democrata e ver como eles tiveram sucesso em bloquear em duas eleições consecutivas aventureiros como o senador Bernie Sanders. O sistema dos super delegados impede que candidatos fora do establishment consigam a nomeação, os democratas foram com dois nomes do mainstream nas duas últimas eleições, perderam com Hillary Clinton em 2016 e possivelmente ganharam com Joe Biden em 2020
A adoção de uma medida semelhante pelo partido republicano tiraria de Trump a capacidade de atropelar todos os potenciais presidenciáveis nas primárias como fez em 2015, e a própria postura de Donald Trump na última quinta feira quando fez um discurso que ao mesmo tempo era estúpido e poderoso, e claramente um discurso que não era de presidente e sim de candidato já indicam para o cenário que Trump não irá sair de cena. Caso o partido republicano opte por neutralizar Trump corre o risco de perder partes chave do eleitorado, é um cálculo complicado de se fazer.
O partido democrata por sua vez teve um desempenho péssimo nessas eleições, a maioria na câmara encolheu, mesmo em estados que Biden venceu como New Hampshire os republicanos conseguiram virar o senado e a câmara, os democratas mantiveram controle da casa mas viram sua maioria ser cortada em 10 assentos, falharam em tirar o assento de todos os incumbentes republicanos, demonstrando mais uma vez que a realidade é que Biden se realmente tiver sido eleito, é porque parte dos republicanos também reprovam Donald Trump e colocaram os republicanos em excelente situação para retomar a câmara em 2022.
O senado na melhor das hipóteses para os democratas acabará empatado e tendo voto de minerva da vice-presidente Kamala Harris, entretanto mesmo nesse cenário extremamente otimista, os republicanos com 50 senadores podem obstruir qualquer legislação, uma vez que nas leis americanas para passar por cima dessas obstruções se necessita de 60 votos dos 100 do Senado federal, isso significa que 10 senadores republicanos precisariam se rebelar para anular a obstrução, estatisticamente improvável. Susan Collins que em nenhuma pesquisa era tida como vencedora no Maine ganhou com enorme margem, Lindsay Graham (Carolina do Sul) e MitchMcConell (Kentucky) foram reeleitos. Os republicanos também tem a maioria dos governadores com 27.
O desempenho abaixo do esperado já abriu uma guerra interna no partido democrata entre a ala moderada, empoderada pela provável chegada de Biden ao poder com uma plataforma centrista com a ala extremista que pede o fim das polícias, o new deal verde e nega a biologia básica, os moderados já sentindo que o partido se moveu demais para a esquerda culparam os progressistas por suas derrotas ou quase derrotas, enquanto a ala progressista rebateu com a classe peculiar de que os centristas são idiotas que não sabem conduzir suas próprias campanhas.
Ao olhar o mapa de votação americano nessas eleições se percebe que a América ainda é um país de centro-direita, para o desespero progressista. Mesmo críticos da administração Donald Trump já deixaram claro que não irão dar suporte para movimentos extremistas como ampliação da suprema corte, acabar com as regras de obstrução ou fazer uma estapafúrdia transição econômica, o senador Mitt Romney (Utah) deixou isso bem claro, qualquer movimento extremista será recebido com grande objeção por parte do senado e da população americana
Esse cenário é conhecido na ciência política como Gridlock, um governo está nessa situação quando aprovar a legislação é difícil e a razão entre leis aprovadas e a agenda do legislativo é baixa, em outras palavras a maioria democrata na câmara pode aprovar qualquer coisa que a maioria republicana no senado bloqueia em caso de maioria dos votos ou obstrui em caso de empate em número de assentos, Biden ainda pode governar e alcançar boas coisas mas irá desagradar a esquerda pois terá de passar legislações marcadas pelo consenso bi-partidário. Em minha avaliação isso foi uma vitória para o presidente eleito, significa que ele poderá isolar os extremistas e reposicionar o partido democrata ao centro do espectro como ele foi na maior parte da história. Mas caso eu esteja errado e Biden depois de velho tenha se corrompido com a agenda radical… o governo estará fadado a um fracasso retumbante, travado pelo senado e tendo que jogar na defensiva nas eleições de 2022 (Mid-Terms) irá entregar de bandeja a câmara dos deputados para os republicanos que uma vez que colocaram 2/3 dos seus assentos em jogo em 2020 precisam de apenas 5 cadeiras para obter maioria na câmara e forçar ainda mais Biden a jogar um jogo centrista e moderado
McConell e Biden tem um histórico de amizade, durante a administração Obama foi Biden que, reconhecidamente um conciliador, conseguiu negociar com McConell para passar pelo senado republicano pautas de interesse bi-partidário, enquanto Obama reclamava do obstrucionismo era Biden que construia o consenso para permitir que o governo funcionasse, Biden precisará mais do que nunca dessas habilidades a partir do próximo ano se de fato for confirmado presidente.
Obs: Sobre as acusações de fraude eleitoral feita por Donald Trump e parte do partido republicano, eu não duvido que tenham existido, mas particularmente duvido que tenha sido na escala necessária para conseguir a virada, as recontagens podem alterar alguns votos, e isso é normal e desejável que ocorra para colocar em pratos limpos essas eleições e afastar qualquer suspeita, a democracia americana e a confiança nas instituições estão acima de qualquer interesse partidário, caso a justiça americana realmente enxergue uma fraude de proporções colossais estaremos diante do maior escândalo desde o Watergate.
Referências Bibliográficas
Livros
MEARSHEIMER, John. The Tragedy of great power politics. New York : W.W Norton & Company, 2001
TOCQUEVILLE, Alexis, Da democracia na américa, São Paulo, Martins Fontes, 2005
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