Na Última sexta feira um crime bárbaro ocorreu na região metropolitana de Paris, o professor Samuel Paty foi brutalmente assassinado por um radical islâmico, o professor que lecionava história e geografia para alunos na faixa dos 14 anos foi morto após dar uma aula sobre um dos valores fundamentais não só de seu país como de todo o ocidente. A Liberdade de Expressão, valor esse que deveria ser algo encarado como sagrado em todos os países e amplamente protegido pelo ordenamento jurídico, o caso trágico gerou muita comoção e sendo otimista pode significar um amplo movimento dos Franceses para retomarem o seu país, possivelmente implicando a médio prazo em um “Frexit” do bloco europeu.
Desde os anos 2000, e especialmente após a eclosão da guerra cívil na Síria, toda a Europa e em especial a França vem sofrendo com a crise migratória, a situação está há muito tempo fora de controle, em parte os Estados europeus não tem muita culpa, uma vez que são vítimas do superpoder exercido por Bruxelas no âmbito da comissão europeia e do parlamento europeu, os países europeus não tem controle sobre sua política migratória, o superestado que a estrutura burocrática da União Europeia hoje representa que controla essa parte, e dado os eventos dos últimos anos começa a ficar claro que a livre circulação de pessoas talvez seja um grande erro.
Antes de tudo é necessário entender como chegamos até aqui, como o continente responsável pelo surgimento da cultura e modo de vida ocidental chegou a um ponto de ruptura? A atual crise migratória é a maior desde a segunda grande guerra e tem suas raízes nos constantes problemas do oriente médio. Especificamente na disputa de poder entre Bashar Al-Assad e o governo americano, movido por forte idealismo da administração de Barack Obama, a qual começou a interferir demais nos assuntos locais com o objetivo de levar a democracia até aquela região. Nesta época, os EUA aproveitavam do movimento Primavera Árabe que ocorreu em janeiro de 2011 e visava em média, a busca dos povos daquela região por governos mais tolerantes e inclusivos, porém a diferença é que a Primavera Árabe foi um fenômeno Bottom-up (de baixo para cima) e não Top-Down (de cima para baixo) e a balança de poder na região é uma das mais complicadas. (Interesses de Israel, Irã, Arábia Saudita, Rússia e dos EUA) Os americanos, cheios de boas intenções, alegaram estar disseminando a democracia e respondendo aos apelos populares, dando apoio aos rebeldes, enquanto o presidente Bashar Al-Assad alegava que a oposição eram apenas grupos terroristas que queriam desestabilizar o país. Ainda nesse jogo estava a Rússia, parceira do regime de Assad que usava seu poder de veto no conselho de segurança da ONU para barrar qualquer tipo de resolução do conselho de segurança das Nações Unidas. Esse impasse acabou por fortalecer o grupo terrorista Estado Islâmico (ISIS),que num período relativamente pequeno, conseguiu o controle de boa parte do território Sírio e esse domínio territorial acabou por ampliar ainda mais a crise dos refugiados.
Outro ponto fundamental para entendermos a situação europeia é entender que a questão migratória opõe o Estado ao princípio consagrado pelo direito internacional público da dignidade da pessoa humana, ambos os lados desse debate tem suas razões, ambos tem aliados poderosos e ambos tem grande capacidade de exercer pressão nos políticos através de Lobby. Temos a princípio três visões teóricas sobre a imigração, a visão econômica, a visão nacionalista e a visão conservadora.
Muitos especialistas tentam entender como a europa chegou ao ponto que está hoje, e sem dúvida esse é um trabalho multi-disciplinar, a economia, a ciência política, as relações internacionais e a teologia dão as suas explicações, o famoso cardeal Robert Sarah, favorito dos conservadores para a sucessão do atual papa disse uma vez que “Se a Europa perder suas raízes será invadida por outros que imporão seus valores, sua cultura e sua religião”, o cardeal está correto em sua fala, mas não deixa de parecer uma tentativa de escapar da própria culpa, uma vez que a igreja católica tem assistido de forma inerte várias dessas mudanças e muito pouco tem feito para alterar o cenário posto. A própria igreja está rachada.
O fluxo de refugiados aumentou demais nos últimos anos, seja por questões relacionadas à guerra, à pobreza ou aos desastres naturais, e expôs a dificuldade dos Estados em lidar com o assunto. Segundo o ACNUR (Agência da ONU para refugiados) entre 2013 e 2014 houve um aumento de 47% de pedidos de refúgio, a maioria dos pedidos de Afegãos e Sírios. Outra parte do lobby pró migração são as ONGs. Segundo o diretor Kenneth Roth da Human Rights Watch “não se trata de capacidade de absorver os imigrantes e sim de falta de vontade política”. Outro argumento de Martin Pluim, diretor do Centro internacional de Política Migratória é de que “os governos preferem ouvir a parte xenofóbica de seu eleitorado”. Durante o auge da crise migratória a Alemanha foi o país europeu que mais se dispôs a receber imigrantes. Em 2015 o país recebeu mais de 800 mil pedidos de asilo, a Chanceler Angela Merkel classificou o período como “o maior desafio em meu tempo como chanceler”. Difícil imaginar que sem a pressão exercida por essas ONGs, pelas nações unidas e pela própria estrutura da UE , Merkel teria tomado essa decisão.
Não era difícil prever que com o aumento de pessoas com valores culturais totalmente diferentes haveria aumento no choque de valores entre eles e a população local, o grande autor americano Samuel Huntington (1927-2008) já nos alertava sobre isso na obra Choque de Civilizações (1996). Merkel provavelmente sabia disso mas mesmo assim preferiu acatar a sugestão das agências internacionais. A posição adotada por Merkel normalmente é a adotada pelos liberais de centro-direita, como também pelos sociais democratas. Esses enfatizam os ganhos ecônomicos em produtividade, mão de obra e funcionamento geral das economias, e no caso europeu ainda há dois pontos fundamentais a serem analisados, a população é tão bem educada que não há nela mão de obra não especializada para tarefas do cotidiano digamos, é um perfil de população diferente da que encontramos no Brasil por exemplo, podemos dizer que de certa forma a Europa foi vítima do seu próprio sucesso. O segundo ponto é que em muitos casos o Terrorismo não vem dos imigrantes imediatos, mas sim de europeus com descendência, de segunda ou terceira geração. Os grupos terroristas sabem disso e usam justamente esses indíviduos para realizar os ataques pois como europeus, passam livremente por todo o continente devido ao acordo de Schengen. Esse é frequentemente apontado como um dos motivos que torna mais difícil a prevenção ao terrorismo na União Europeia do que nos Estados Unidos. No geral o argumento econômico é que a Europa é incapaz de funcionar sem imigrantes.
As outras duas visões teóricas sobre a imigração estão dentro do pensamento conservador, os Nacionalistas da chamada Nova Direita, como o primeiro ministro húngaro Viktor Órban, o presidente polonês Andrzej Duda, e a presidenciável francesa Marine Le Pen apelam diretamenta ao populismo ao dizer que querem “proteger o cristianismo europeu de uma nova invasão bárbara”. Uma terceira posição que me parece a mais adequada no tópico em questão é a dos conservadores britânicos, como Roger Scruton, que aponta que o erro não é receber refugiados e imigrantes e sim a integração desses com a cultura dos locais que os acolheram.
Nesse caso a culpa dos problemas gerados (estupros, criminalidade, terrorismo) seria do Estado, pois ele ainda que bem intencionado, querendo ajudar, acaba atrapalhando pois desenha uma política pública para que a maioria (locais) tenha de se adaptar à minoria (estrangeiros). Nessa visão o Estado enquanto soberano deve se preocupar primeiro com aqueles que possuem um vínculo local, valores e costumes não divergentes. Portanto, de acordo com a visão dos conservadores, esses não se opõem em receber os imigrantes, mas, defendem que eles devem ser aculturados de acordo com o local que os recebeu e isso também esteve no cerne da discussão sobre o Brexit. Não só a crescente burocratização da UE, mas o fato de que os valores nacionais e a soberania estariam sendo transmitidas para as mãos de uma burocracia transnacional, ou seja geraria um sistema com menos “Accountability” (prestação de contas).
Infelizmente a visão dos conservadores britânicos é minoritária hoje em dia, prevalecendo está o entendimento liberal das fronteiras abertas, que gerou uma grande onda de atentados terroristas, estupros e criminalidade. Tais fatos servem de combustível para o crescimento dos nacionalistas, com cada vez mais fôlego apontam os erros da política migratória europeia e ganham cada vez mais adeptos. Um extremo gera combustível para o outro.
Soluções viáveis para a questão não costumam aparecer no noticiário e nem ter relevância política, na atual distribuição de poder global (Unipolar tendendo à bipolaridade) é mais interessante para os países europeus terem esses problemas internos mas ainda assim como bloco na forma da União Européia rivalizar com Rússia, China e Estados Unidos. Então mesmo com os persistentes ataques terroristas muito pouco deve mudar na política migratória europeia. No início do texto disse que com otimismo a trágica morte do professor Samuel Paty poderia dar um empurrão para um “Frexit”, dependendo dos resultados das próximas eleições francesas isso pode ocorrer, mas é improvável, o caso britânico é diferente em muitos aspectos, o divórcio bem menos complicado devido aos britânicos terem optado pela não adoção do Euro e a excelente posição global da libra dentre as moedas dos países desenvolvidos. Sem falar que a França dentro da estrutura da União Europeia é o segundo país que mais se beneficia conseguindo várias proteções aos seus produtores no âmbito comercial.
Também é necessário entender que o Estado Laico, a divisão entre religião e política é uma criação ocidental e iluminista, para os islâmicos até existe essa separação, em países como a Turquia, Egito, Líbano e Marrocos. Mas nesses países a ampla maioria da população é Islâmica chegando a até 90%. Existe convivência pacífica quando a minoria é outra seja ela de judeus ou de católicos, normalmente os sunitas são mais moderados que os xiitas (Irã). Portanto o Estado Laico existe no Islamismo de forma formal, na letra da lei, mas não na prática. É engraçado que o que o ocidente deveria fazer para as relações entre os povos serem mais pacíficas é exatamente o que é feito pelos islâmicos no seu território, a chamada aculturação. Lá ocidentais são minoria, assim como eles são minoria no ocidente. Se esse processo fosse bem conduzido teríamos potencialmente a solução para o problema. Claro, também existem países islâmicos simpáticos ao ocidente, os dois exemplos frequentemente citados são a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos. Frequentes parceiros de negócios e aliados geopolíticos, inclusive auxiliariam no pós 11/09. Mas ainda assim a forma de enxergar o mundo é completamente diferente, forçar a convivência como acontece hoje com as atuais políticas migratórias da União Europeia é a receita para o caos, o conflito é inevitável. Como aponta Huntington, as únicas duas civilizações com intenções de expansão e pretensões universalistas são a ocidental e a islâmica e por isso se encontram em constante conflito político, cultural e ideológico.
Referências:
Livros
SCRUTON, Roger – Como ser um Conservador : Rio de Janeiro, Record : 2014
HUNTINGTON, Samuel P. – Clash of Civilizations and the remaking of world order : Nova Iorque, Simon & Schuster : 1996
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