Completando seu primeiro semestre na presidência, o democrata Joe Biden tem muitos desafios pela frente e até então não conseguiu fazer nada mais do que um governo mediano com destaques na política externa e muitos problemas na política interna. Sem dúvida alguma, Biden deve celebrar a mudança de percepção que o mundo teve com sua vitória. Apesar de Trump ter feito um bom governo e, verdade seja dita, sem a pandemia teria garantido os Swing States necessários para ser reeleito, o legado da sua administração, que em fria análise foi melhor do que a maioria dos críticos apontam, acabou manchado com a desastrada invasão do Capitólio no início de Janeiro de 2021.
Na data do ocorrido, vários analistas internacionais e eu imaginávamos, ainda que por motivos diferentes, que os Estados Unidos de Biden manteriam uma postura isolacionista como foi a tônica dos anos Trump. Felizmente,o atual presidente surpreendeu e tem se mostrado bem internacionalista, preocupado não só com a América, mas também com o mundo enquanto prepara os EUA para o seu maior desafio desde o fim da Guerra Fria (1945-1990). Vimos o inevitável embate com a China, alianças que esquecidas por Trump foram revividas e a OTAN voltando a ter importância, inclusive com a possibilidade de participação efetiva do Brasil (claro sinal da maturidade política do secretário de Estado Antony Blinken).
Biden conseguiu unir os países do G7 em uma aliança multinacional contra a China tanto no campo das investigações sobre a origem do Coronavírus como em declarações conjuntas contrárias às clássicas práticas de Dumping (no próximo artigo tratarei do imposto mínimo global proposto pelo G7), além de ter dado declarações contrárias ao genocídio praticado pelo regime chinês em Xinjiang contra minorias étnicas, promessas de proteção a Taiwan e ameaças bem sérias quanto a China retirar a autonomia de Hong Kong. Durante a administração Obama (2009-2016), os Estados Unidos foram muito criticados por deixar a China operar livremente e ampliar a sua capacidade de projeção de poder. Biden não cometeu o mesmo erro e, assim como Trump (mais um sinal de maturidade política), está pressionando muito o regime Chinês. Outro acerto de Biden foi sua reação perante os protestos em Cuba, que estouraram no último mês, valendo-se de palavras fortes contra o regime castrista e decisões para tornar criminosos internacionais os integrantes do regime e operações para reestabelecer o acesso dos cubanos à internet.
Diferentemente do Ex-Presidente Trump, que tentava resolver tudo sozinho, Biden, como um político já experiente, sabe bem o valor da diplomacia e a importância de aliados, especialmente na Europa Ocidental, para que seja possível impedir a tomada de poder do sistema internacional por Beijing. É aqui que reside a importância de limitar a influência de outsiders como Donald Trump no sistema político americano, mesmo para aqueles que enchem a boca para criticar a América (vale dizer que estar em posição de liderança atrai um enorme número de críticas, justas ou injustas), é impossível negar que o que acontece lá gera repercussões no mundo todo e operar na área da Política Externa sem previsibilidade da parte hegemônica do sistema internacional se torna praticamente um festival de erros.
Neste ponto é importante elogiar o sistema interno de superdelegados do Partido Democrata que impede que figuras como Bernie Sanders consigam a nomeação para concorrer à Casa Branca. O partido Republicano, por outro lado, não possui um mecanismo de proteção contra lideranças carismáticas como Donald Trump. Uma coisa curiosa da política americana é que as bases de ambos os partidos representativos (Republicanos e Democratas) são isolacionistas. Existe um desejo em mais da metade da população americana de que o país seja sim mais voltado para dentro, basta olhar os gastos americanos com Defesa e entender o por quê: são mais de 700 bilhões de dólares gastos anualmente com a pasta. O americano médio, sem dúvida alguma, preferiria que esse valor fosse aplicado de forma direta no país, com benefícios melhor observáveis para ele. Felizmente, as elites que comandam os dois partidos pensam diferente e operam em consenso da posição americana como líder do mundo ocidental. É o que Stephen Walt, analista de Política Externa, diz: “Existe uma liderança negativa por parte dos Estados Unidos.”. Negativa não porque os Estados Unidos não conseguem prover os bens públicos globais necessários, mas simplesmente porque nenhum outro país tem as mesmas capacidades que ele. Aqui no Brasil, o Itamaraty tem um peso considerável na formulação e aplicação da política externa, mesmo com o fortalecimento da diplomacia presidencial inaugurada por José Sarney, mas nos Estados Unidos a caneta do Presidente tem mais peso.
Até o momento, Biden cometeu dois erros na Política Externa: um que já parece ter sido controlado, envolvendo a Turquia, e outro, mais significativo, que é a saída americana do Afeganistão. É importante lembrar que tanto Obama quanto Trump pensaram em fazer o mesmo, mas foram convencidos pelos militares e diplomatas de que a saída seria um equívoco. Biden arriscou e, de fato, tal saída já se provou um erro que pode ser catastrófico, tal qual a tentativa de acordo de paz trumpista com o grupo terrorista Talibã que foi um dos motivos do Partido Republicano não se unificar à favor de Trump nas eleições de 2020. Biden errou no cálculo de custo-benefício, os custos de permanecer seriam mínimos, e não houve nenhuma morte americana em solo afegão desde 2018, além disso, o timing da decisão foi o pior possível, acontecendo às vésperas do aniversário de 20 anos do 11/09. Assim que os Estados Unidos e os europeus começaram a deixar o país, o Talibã avançou e conquistou partes importantes do território. O grupo rebelde fundamentalista já controla 90% da região fronteiriça no momento e está atualmente em fase de cerco a grandes cidades como a capital Cabul. Observem nos mapas abaixo as mudanças no controle do território de 2017 para 2021. Fonte: BBC
Não deve ser descartada a necessidade de uma intervenção humanitária futura no país, pois é apenas questão de tempo até que a capital caia em mãos fundamentalistas, seja uma nova intervenção americana ou missão de paz da ONU.
Na Política Interna, contudo, a situação do governo é bem mais delicada, mesmo com maioria na Câmara e no Senado, Biden tem visto seus ambiciosos planos de governo serem derrotados pela inteligência do líder da minoria no Senado, o Senador Mitch McConell (R-Kentucky). Hoje, o partido democrata tem 50 votos no Senado contra 50 votos republicanos. Nas votações que pedem uma maioria simples, Biden consegue ter superioridade devido ao voto de minerva da Vice-Presidente Kamala Harris, que também ocupa o cargo de presidente do Senado americano, mas nas votações mais importantes em que se pede uma maioria qualificada,o Presidente Joe Biden tem de nenhuma a pouca chance de conseguir aprovações. Ao menos dois senadores democratas, Joe Manchin (Virgínia Ocidental) e Kyrsten Sinema (Arizona), costumam votar com os republicanos na maioria das matérias.
Projetos que contam com o apoio da ala radical do partido democrata, como a ampliação da Suprema Corte, o New Deal Verde, o combate à supressão de votos e a anistia para imigrantes ilegais, jamais alcançariam os 60 votos necessários para superar a obstrução republicana, nem mesmo se os democratas moderados como Manchin e Sinema aderissem à agenda da ala radical democrata. Os democratas moderados também não tem a menor intenção de se livrar das regras de obstrução ou do colégio eleitoral, como é a ambição dos seus colegas de partido radicais. Essa característica da distribuição de poder no Senado força Biden a sempre buscar um tipo de consenso bipartidário para suas propostas, como o que conseguiu nessa semana com o pacote de infraestrutura.
Para piorar ainda mais a situação do desenho legislativo que Biden enfrenta, nas Mid-Terms de 2022 os republicanos têm grandes chances de retomar o controle de ambas as casas legislativas, pois colocaram muito mais cadeiras em jogo que os democratas em 2020. Tal resultado tornaria Biden um Presidente pato manco ainda mais dependente de consensos bipartidários para aprovar qualquer matéria.
Fora isso, Biden ainda terá que lidar com um aumento extremamente considerável nas taxas de homicídio por erros dos próprios democratas de matriz radical que pediram pela retirada de fundos das polícias alegando excesso de autoridade e violência policial. Ainda, a situação na fronteira sul segue desesperadora e a vice Kamala Harris, que foi designada para resolver a questão, não conseguiu nenhuma solução que não seja a extremamente republicana “Não venham pra cá de forma ilegal ou vocês serão deportados”, o que acabou gerando desgaste para o Presidente até mesmo dentro do seu partido. Além disso, a variante Delta da Covid-19 tem tomado de assalto os Estados Unidos em virtude da força do movimento anti-vacina e a Economia ainda está em fase de recuperação com a taxa desemprego elevada devido ao aumento considerável do seguro-desemprego. Se a variante Delta conseguir furar as defesas das vacinas, outra paralisia econômica é esperada enquanto os laboratórios adaptam ou desenvolvem uma nova vacina para lidar com a variante.
Biden pode ser o homem mais poderoso do mundo, mas, sem dúvidas, também é um dos que mais tem problemas no momento.
2 Comentários
Parabéns Rodrigo – sempre comentários atuais e com muito conhecimento internacional
Muito lúcida a análise. Muito do que ocorre na politica americana, vem sendo importada para o Brasil. E essa ampla visão apresentada serve para refletirmos nosso destino como nação e nossa imediata e urgente definição política. Especialmente por parte das forças economicas.