Faleceu no último dia 21 o Santo Padre, o Papa Francisco, o ex-cardeal Jorge Mario Bergoglio, o primeiro papa latino-americano. A causa oficial da morte foi um acidente vascular cerebral (AVC) que o levou a um coma, seguido por uma parada cardiorrespiratória irreversível.
Neste artigo, buscarei fazer uma análise de seu pontificado tanto do ponto de vista doutrinário quanto político. Antes de qualquer reflexão, é preciso ressaltar que o Santo Padre não é um agente político como qualquer chefe de Estado de um país, mas sim o chefe entre os sucessores dos apóstolos. Ele detém as chaves do Reino dos Céus (Mt 16,19). O Papa é o líder da Igreja, do Corpo Místico de Cristo, e sua finalidade transcende as disputas políticas dos Estados nacionais.
Desde sua primeira aparição na sacada de São Pedro, sem a tradicional mozzetta vermelha e sem a saudação papal tradicional (“Benedictus qui venit in nomine Domini”), Francisco já dava indícios de que seu pontificado seria marcado pela informalidade. Estava óbvio a todos que o pontificado de Francisco não seria como de seus antecessores. Mas também, não se tratava de um pontificado totalmente diferente, na verdade, Francisco foi o Papa que encarnou de forma mais radical o “espirito” do Concílio Vaticano II. E que os erros do Concílio se fariam visíveis como uma ampliada lupa neste pontificado.
Desde a convocação dos Sínodos sobre a Família, ficou claro que a doutrina não estava segura. Questões que já haviam sido esclarecidas pelo Magistério – como a impossibilidade de comunhão para divorciados recasados, ou a natureza intrinsecamente desordenada dos atos homossexuais – foram colocadas em pauta como se fossem discutíveis. A impressão, cada vez mais evidente, era de que a pastoral estava sendo usada como cavalo de Troia para relativizar a doutrina.
A famigerada “consulta aos fiéis” – uma espécie de plebiscito moral – foi outro erro crasso. Como se a verdade revelada dependesse da opinião pública ou de estatísticas sociológicas.
O ápice do escândalo veio com o Relatio post disceptationem do Sínodo de 2014, que chegou a falar em “valores positivos” nas uniões homossexuais e em “acolher” sem julgar casais vivendo em adultério. Um documento oficial do Vaticano que flerta com a legitimação do pecado mortal — isso era algo impensável antes desse pontificado.
Não à toa, o cardeal Raymond Burke disse com todas as letras: “Estamos em uma guerra.” E estava certo. Já não era apenas uma batalha pastoral, mas uma guerra pela integridade da fé católica.
Com a publicação de Amoris Laetitia, em abril de 2016, consumou-se o que já se ensaiava: a substituição da moral objetiva por uma moral subjetiva e sentimental. O ponto nevrálgico está no capítulo 8, que trata de “acompanhar, discernir e integrar a fragilidade”.
Ali, numa linguagem cuidadosamente nebulosa, insinuou-se que, “em certos casos”, casais em situação objetiva de pecado grave poderiam receber os sacramentos — incluindo a Sagrada Eucaristia. A Nota 351, que menciona essa possibilidade, entrou para a história como uma bomba teológica camuflada.
Isso é gravíssimo. Não se trata de mera “leitura pastoral”, mas de uma afronta direta ao ensinamento perene da Igreja. O Concílio de Trento, o Catecismo de João Paulo II, e toda a tradição moral da Igreja são deixados de lado em nome do discernimento “caso a caso” – como se a verdade pudesse ser suspensa por circunstâncias subjetivas.
Em nome da “misericórdia”, se profana o Santíssimo Sacramento.
O pior não foi apenas o conteúdo, mas a estratégia: escrever com ambiguidades, permitir múltiplas interpretações, e depois fazer vista grossa enquanto episcopados inteiros aplicavam práticas contrárias à fé. Na Alemanha, em Malta, na Argentina — abriu-se oficialmente a comunhão para adúlteros públicos. Enquanto isso, na Polônia ou em dioceses fiéis, manteve-se a doutrina.
Uma Igreja com práticas sacramentais divergentes conforme o país é uma Igreja fragmentada. Isso não é “sinodalidade”, é caos. Isso não é “pastoralidade”, é traição à verdade.
Diante de tamanho escândalo, quatro cardeais — Burke, Caffarra, Brandmüller e Meisner — fizeram o que era obrigação moral: enviaram ao Papa os cinco Dubia, pedindo clareza. As perguntas eram simples: ainda se aplica a moral objetiva? Ainda vale o ensinamento de João Paulo II? A Eucaristia pode ser dada a quem vive em pecado público?
Francisco nunca respondeu. O silêncio papal foi, por si só, um gesto devastador. O pastor calou diante das ovelhas confusas. E não só calou: permitiu que seus aliados perseguissem e marginalizassem aqueles que ousaram defender a clareza doutrinal.
O período entre 2014 e 2016 marca, sem dúvida, um ponto de inflexão. Foi quando a Igreja institucional, sob este pontificado, deixou de ensinar com clareza e passou a administrar ambiguidade. Foi quando a fidelidade à doutrina passou a ser motivo de suspeita, e o erro passou a ser acolhido sob o pretexto da compaixão.
Não há verdadeira caridade sem verdade. Não há pastoral eficaz que contradiga a doutrina. E não há salvação sem arrependimento e conversão. A Igreja de Cristo não pode ser reformulada a cada sínodo, nem sua moral adaptada aos ventos do mundo.
O que aconteceu nesse período foi — sem exagero — um ensaio de apostasia camuflada sob o verniz da misericórdia.
Se os anos anteriores representaram a corrosão da moral católica, 2017 representou um escândalo simbólico de primeira grandeza: a celebração vaticana dos 500 anos da heresia protestante. Enquanto o mundo recordava cinco séculos da revolta de Lutero contra a Igreja de Cristo, o Vaticano escolheu não apenas silenciar sobre os erros doutrinários da Reforma, mas participar ativamente das comemorações.
Sim, comemorou-se o cisma.
Francisco foi a Lund, na Suécia, em 2016, para o pontapé inicial das celebrações com a Federação Luterana Mundial, mas em 2017 o escândalo ganhou força total. O Vaticano acolheu uma estátua de Lutero dentro do próprio recinto papal. Isso não é uma caricatura, nem teoria conspiratória: foi um ato real. Um símbolo do maior cismático da Cristandade sendo reverenciado no coração do catolicismo.
Pior ainda foi a linguagem usada nas mensagens oficiais: Lutero foi descrito como alguém que “procurava sinceramente a reforma da Igreja”, como se não tivesse rasgado votos, negado sacramentos, ultrajado a Missa e semeado divisão que perdura até hoje. Como se tivesse sido apenas um zeloso fiel incompreendido.
Essa leitura romantizada do maior divisor da Cristandade é uma ofensa direta aos santos e mártires católicos que morreram pela fidelidade à Igreja Una, Santa, Católica e Apostólica.
Nenhuma palavra clara foi dita sobre os erros centrais do protestantismo: a negação da transubstanciação, da sucessão apostólica, do culto aos santos, da autoridade papal, da confissão sacramental. Nenhuma reafirmação da verdade católica frente aos erros históricos.
Ao contrário, só se falou de “caminhos comuns”, “valores partilhados” e “passos de reconciliação”. Mas que reconciliação é possível sem retorno à verdade? Que tipo de “unidade” se constrói sobre o silêncio cúmplice diante da heresia?
A Reforma protestante foi um desastre espiritual. Custou a perda de milhões de almas, destruiu altares, conventos, imagens sagradas. Deu origem ao relativismo moderno e ao subjetivismo doutrinal. Celebrar isso não é caridade ecumênica — é traição.
Esse episódio mostrou que, sob este pontificado, o falso ecumenismo deixou de ser um desvio lateral e se tornou política oficial da Santa Sé. Não mais um diálogo respeitoso com vista à conversão, mas uma nova “eclesiologia líquida”, onde toda diferença se dilui no sentimentalismo.
É um ecumenismo sem exigência, sem verdade, sem Cruz.
O objetivo já não parece ser a conversão dos que estão fora da Igreja, mas a transformação da própria Igreja em algo indefinido — uma plataforma de consenso moral e social, mas sem identidade clara, sem dogma, sem missão salvífica.
O ano de 2017 selou, simbolicamente, a subversão dos pilares visíveis da fé: a verdade doutrinal e a identidade histórica da Igreja foram relativizadas diante de uma nova religião do diálogo absoluto. Uma religião sem combate, sem testemunho, sem mártires — porque ninguém mais seria herege.
E se Lutero hoje pode ser homenageado no Vaticano, o que mais poderá ser aceito amanhã?
A resposta está clara: tudo, menos a Tradição.
O Sínodo para a Amazônia, convocado com o pretexto de abordar desafios pastorais da região, foi na prática um laboratório para uma nova teologia ecologista e indigenista, totalmente desconectada da fé católica tradicional.
Desde a Instrumentum Laboris — um documento preparatório carregado de jargão ideológico e com traços de panteísmo — já se percebia que esse não seria um sínodo como os outros. Falava-se da “sabedoria ancestral dos povos originários”, da “relação cósmica com a natureza”, e reconhecer ministérios femininos. Era uma tentativa descarada de fabricar uma “Igreja amazônica”, como se houvesse mais de uma Igreja de Cristo.
Mas o que ninguém esperava — nem mesmo os mais alertas — era o nível de profanação pública que seria cometido em Roma.
No dia 4 de outubro de 2019, no próprio Vaticano, nos Jardins do Vaticano, diante do Papa, ocorreu uma “cerimônia” com indígenas — na qual se prostraram diante de uma imagem nua de uma mulher grávida, identificada pelos próprios participantes como a Pachamama, a “mãe terra” da mitologia andina.
A cena foi filmada, documentada, transmitida.
A imagem foi posteriormente colocada em destaque em uma igreja consagrada — a Santa Maria in Traspontina — onde se realizou uma espécie de vigília pagã com cantos e gestos tribais. Durante dias, aquele ídolo esteve num altar lateral, em solo sagrado. Uma imagem idolátrica, nua, profanando uma casa de Deus.
Quando dois fiéis católicos austríacos, escandalizados, retiraram as estátuas do templo e as lançaram no Tibre, foram imediatamente perseguidos pela imprensa católica institucional, tratados como fanáticos e extremistas — quando, na verdade, fizeram o que um São Bento, um São Francisco Xavier ou um São Bonifácio teria feito.
Esse episódio foi apenas o símbolo mais visível de uma mudança teológica mais profunda: a substituição da soteriologia pela ecologia. Já não se fala mais de salvação das almas, mas de “conversão ecológica”. Já não se invoca o nome de Cristo, mas se exalta a “mãe terra”, os “ritmos da floresta”, a “sabedoria dos ancestrais”.
A religião tradicional é substituída por um culto horizontal, naturalista, panteísta — uma paródia pagã da verdadeira fé.
No dia 16 de julho de 2021, festa de Nossa Senhora do Carmo, o Papa Francisco assinou o motu proprio Traditionis Custodes, revogando na prática o Summorum Pontificum de Bento XVI — o documento que havia reconhecido que a Missa tradicional nunca foi juridicamente ab-rogada e que qualquer sacerdote poderia celebrá-la sem necessidade de permissão especial.
Com Traditionis Custodes, a lógica se inverteu: agora a Missa tradicional é vista como uma ameaça à “unidade da Igreja” — e seu uso passou a depender da aprovação direta dos bispos, com severas restrições. Muitos desses bispos, evidentemente hostis à Tradição, trataram de proibi-la ou reduzi-la ao mínimo, numa perseguição cruel e sistemática.
O que os inimigos da fé não conseguiram fazer durante séculos — abolir a liturgia apostólica — agora era tentado de dentro da própria hierarquia da Igreja.
O documento foi acompanhado de uma carta repleta de juízos injustos, generalizações infundadas e um tom autoritário contra os fiéis ligados à liturgia tradicional. Francisco alegou que esses fiéis seriam “instrumentalizadores da Missa”, “divisores da Igreja”, “ideologizados” e “inimigos do Concílio Vaticano II”.
Mas a realidade — e ele sabe disso — é que milhares de jovens, famílias numerosas, vocações fervorosas e fiéis profundamente piedosos encontraram na Missa de sempre a fonte da sua santificação.
A acusação de “divisão” foi usada como desculpa para reprimir o único segmento da Igreja que ainda cresce com vigor.
Enquanto hereges e pagãos são acolhidos, os filhos fiéis da Tradição são perseguidos.
A Missa tradicional é a Missa de São Gregório Magno, de Santo Tomás de Aquino, de São Pio V, de São João Maria Vianney, de São Padre Pio. Foi essa Missa que alimentou todos os grandes santos da história.
Mas, para este pontificado, essa Missa agora representa um “perigo”. Um risco de “retrocesso”. Uma ameaça à “unidade pastoral”.
A pergunta é inevitável: que tipo de unidade é essa que não comporta a própria Tradição da Igreja?
O conteúdo de Traditionis Custodes deixa claro que o problema não é só litúrgico — é ideológico. O alvo não é apenas a forma do rito, mas todo um modo de ser católico que se ancora na doutrina tradicional, na ascese, no latim, na música sacra, no silêncio, na reverência, na sacralidade, na objetividade da fé.
O globalismo eclesial de Francisco, com sua nova linguagem sinodal, horizontal e fluida, não tolera a existência de uma liturgia que ainda proclame com clareza a transcendência, o sacrifício, a hierarquia, a conversão, a penitência e o inferno.
A Missa tradicional não é apenas outro “estilo litúrgico” — ela é um testemunho vivo contra o modernismo e seus frutos podres.
A resposta dos católicos fiéis à Tradição foi de dor, mas também de firmeza. Surgiram protestos, peregrinações penitenciais, adorações e manifestações pacíficas por todo o mundo. Mesmo com padres proibidos, grupos expulsos e fiéis dispersos, a Missa de sempre não morreu.
Ao contrário: ela se tornou sinal de contradição, de resistência, de esperança. O que Bento XVI chamou de “tesouro para toda a Igreja” tornou-se agora a bandeira de um remanescente fiel, disposto a manter viva a fé dos Apóstolos, mesmo sem o apoio de muitos pastores.
Traditionis Custodes não é apenas um documento administrativo. É uma declaração de guerra contra a herança litúrgica da Igreja. O nome, que ironicamente significa “os guardiões da Tradição”, revela-se um sarcasmo trágico, pois ali a Tradição é tratada como doença, e os fiéis da Missa de sempre como vírus a serem contidos.
Mas a Tradição não pode ser cancelada por decreto. Ela sobreviveu a revoluções, invasões, crises internas, antipapas, e continuará viva — porque ela é sustentada por Deus.
E mesmo que o mundo inteiro negue, os filhos da Igreja verdadeira continuarão a rezar a Missa de sempre, nem que seja nas catacumbas.
No dia 18 de dezembro de 2023, às vésperas do Natal, o Vaticano publicou a declaração Fiducia Supplicans, sob a chancela do Dicastério para a Doutrina da Fé, presidido por Dom Victor Manuel Fernández, braço-direito teológico de Francisco.
O documento autoriza a bênção a “casais em situação irregular”, o que inclui uniões adúlteras e parcerias homossexuais — desde que não se trate de uma bênção “ritual” ou com aparência litúrgica.
A distinção artificial entre “bênção ritual” e “bênção espontânea” foi imediatamente percebida por qualquer católico fiel como um truque semântico: na prática, abre-se a porta para que padres abençoem uniões pecaminosas com o aval de Roma, desde que evitem a linguagem explícita.
Até então, o magistério sempre reconheceu que o pecador arrependido pode ser acolhido e ajudado — sem jamais aprovar o pecado em si. O que Fiducia Supplicans faz é o contrário: tenta justificar a bênção da situação pecaminosa como se fosse um “sinal da misericórdia de Deus”.
É uma mudança de paradigma: não se trata mais do acolhimento ao pecador, mas da aceitação da sua condição objetiva de pecado. O pecado deixou de ser obstáculo — e tornou-se parte da paisagem pastoral.
Esse tipo de linguagem pastoral ambígua mina a clareza moral católica, relativiza a gravidade do pecado mortal e induz os fiéis ao erro e à perdição.
A reação foi imediata — e reveladora.
- Conferências episcopais inteiras rejeitaram a aplicação do documento: Polônia, Hungria, Nigéria, Gana, Camarões, Malawi, Cazaquistão, e outras.
- Bispos africanos, em bloco, declararam que não aceitariam jamais abençoar aquilo que Deus rejeita — e que nenhum “documento pastoral” mudaria isso.
- Mesmo entre bispos conservadores da Europa e das Américas, houve duras críticas e notas de esclarecimento, tentando limitar ou bloquear a recepção do texto.
O resultado prático foi um colapso da autoridade doutrinal da Santa Sé: pela primeira vez na história moderna, bispos rejeitam abertamente um texto aprovado pelo Papa — e permanecem em comunhão com ele.
Isso só confirma o que os tradicionalistas sempre denunciaram: a lógica sinodal da ambiguidade destrói a unidade da Igreja, porque abandona a verdade como critério objetivo de comunhão.
Ao longo das últimas décadas, muito se falou sobre o “espírito do Concílio” — uma expressão nebulosa usada para justificar práticas, ideias e mudanças que não estão sequer nos documentos do Vaticano II, mas que se afirmam como “fidelidade ao seu impulso.” João Paulo II e Bento XVI, embora participantes ativos do Concílio, ainda tentaram frear os excessos desse “espírito” apelando para uma “hermenêutica da continuidade”. Já Francisco rompe com qualquer freio: ele não apenas abraça o espírito do Concílio — ele o encarna, leva-o às últimas consequências e o transforma em programa de governo.
O Vaticano II, como reiterado por seus próprios autores, não definiu dogmas novos nem condenou heresias antigas — foi “apenas” um concílio pastoral. Mas foi justamente nesse caráter “pastoral” que se escondeu uma revolução silenciosa, pois a linguagem dos documentos conciliares introduziu ambiguidade deliberada, jogando com termos como “subsiste”, “ecumenismo”, “liberdade religiosa” e “participação dos leigos”, sem defini-los com clareza.
Francisco pega essas ambiguidades e as transforma em ação pastoral irreversível. O que antes era apenas uma tensão no texto, agora é norma prática. O que era ambíguo, torna-se critério. Ele governa não pela fé perene, mas pela “abertura ao novo”, pela “escuta do povo de Deus”, pela sinodalidade fluida.
A palavra de ordem do Vaticano II era aggiornamento — “atualização”. Francisco transforma isso em uma nova ortodoxia revolucionária, onde tudo o que é antigo é suspeito, e tudo o que é moderno é automaticamente “sinal dos tempos”.
Sob sua direção, a Igreja já não se vê como mestra da verdade, mas como aprendiz do mundo. Isso se vê em cada gesto, cada documento, cada nomeação. A missão deixou de ser converter — passou a ser “dialogar”. A doutrina deixou de ser âncora — passou a ser ponto de partida para “processos”. A moral deixou de ser norma objetiva — virou “acompanhamento”.
Essa é a lógica interna do “espírito do Concílio”, levada até o fim: não se trata mais de transmitir a fé de sempre, mas de adaptá-la à cultura presente — mesmo que isso exija deixá-la irreconhecível.
Um dos pilares do Vaticano II foi a mudança na eclesiologia: a Igreja já não é apenas a sociedade hierárquica fundada por Cristo, mas agora se define como “Povo de Deus em caminho”. Francisco transforma essa linguagem em estrutura de governo. A sinodalidade, antes um termo vago, agora se torna modelo eclesial global, substituindo o magistério por processos de escuta, e o episcopado por assembleias deliberativas.
O resultado é uma Igreja sem rosto definido, sem identidade clara, sem autoridade visível. Exatamente como queriam os teólogos progressistas da era conciliar: uma Igreja democratizada, horizontal, “em saída” — mas também em dissolução.
- Na liturgia, Francisco não apenas freia o crescimento da Missa tradicional com Traditionis Custodes, mas busca eliminar a própria distinção entre sacro e profano, promovendo celebrações abusivas, inculturações selvagens e performances antropocêntricas.
- Na moral, promove a pastoral da ambiguidade: insinua aprovação tácita a relações desordenadas (Fiducia Supplicans), relativiza normas objetivas e coloca a consciência subjetiva acima da Lei de Deus.
- No ecumenismo, vai além dos documentos conciliares: reza com pagãos, convida hereges para pregar no Vaticano, e trata todas as religiões como vias igualmente válidas para a “fraternidade universal.”
Nada disso está explicitamente nos textos do Vaticano II — mas tudo isso se alimenta do seu “espírito” liberal, antropocêntrico e modernista. Francisco é, nesse sentido, o Papa mais coerente com o impulso subterrâneo do Concílio.
Francisco é, sim, o ápice do Concílio Vaticano II — não dos seus textos, mas do seu “espírito”. Ele é o fruto maduro da ambiguidade, da horizontalidade e da mentalidade secularizante que o Concílio deixou entrar. Ele não rompeu com o Vaticano II — ele é o seu desdobramento mais fiel.
E, ao mesmo tempo, é o seu fim lógico: pois quando tudo é processo, mudança, escuta e pastoralidade, não sobra nada de sólido. Nem mesmo fé.
A crise da Igreja não começou com Francisco — mas com ele, ela se mostra sem véus. E talvez isso seja necessário. Porque só quando o erro se torna visível, é que a Verdade pode, enfim, ser restaurada.
Seria desonesto — mesmo para um católico tradicionalista profundamente indignado com os rumos da Igreja sob Francisco — ignorar por completo certos gestos, documentos e nomeações que destoam, ao menos parcialmente, da linha modernista dominante desde 2013. Não porque revelem uma verdadeira conversão de rumo, mas porque, como sinais isolados, ainda preservam um eco da fé perene, como brasas sob as cinzas.
Em 2024, a publicação da declaração Dignitas Infinita, pelo Dicastério para a Doutrina da Fé — com aprovação de Francisco — surpreendeu ao conter afirmações firmes sobre temas morais que vinham sendo sistematicamente minados por declarações ambíguas no passado.
O documento:
- Condenou explicitamente a ideologia de gênero, chamando-a de tentativa de “negar a diferença sexual”.
- Reafirmou que o direito à vida começa na concepção, e se opôs com clareza ao aborto e à eutanásia.
- Denunciou os “pseudo-direitos” que minam a dignidade humana sob pretexto de liberdade.
Embora o texto ainda carregue certa linguagem típica da nova pastoral — diluída, horizontal, pouco sacrificial — ele representou um freio momentâneo à marcha do progressismo radical. De certo modo, resgatou trechos da doutrina natural e cristã que pareciam já banidos do vocabulário oficial da Igreja sob este pontificado.
Ainda que com um viés muito mais sociológico do que escatológico, Francisco tem, por vezes, feito críticas válidas ao espírito da modernidade:
- Denunciou o colonialismo cultural do Ocidente, que impõe ideologia de gênero a países pobres sob chantagem financeira.
- Repreendeu o transumanismo, o culto ao corpo e à juventude eterna, e a obsessão tecnológica como negações da condição humana.
- Criticou abertamente o abortismo disfarçado de saúde reprodutiva, mesmo sendo contraditório com algumas das suas ações e nomeações.
São críticas que, embora muitas vezes venham desacompanhadas de uma verdadeira visão sobrenatural e penitencial, tocam em verdades que a esquerda eclesial se recusa a pronunciar.
Outro ponto que merece registro, embora com cautela, é que nem todos os cardeais criados por Francisco representam a linha modernista extrema. Entre dezenas de escolhas claramente alinhadas à agenda sinodal, alguns nomes causaram surpresa positiva entre católicos sérios:
- O cardeal Robert Prevost, por exemplo, apesar de algumas ambiguidades, tem se mostrado moderado frente a desvios doutrinais mais radicais.
- O cardeal Mauro Piacenza, de longa carreira na Cúria, embora anterior ao pontificado de Francisco, manteve-se influente e defensor da ortodoxia sacramental.
- E mesmo o cardeal Gerhard Müller, crítico declarado de vários documentos pontifícios, foi mantido com certo respeito institucional, mesmo depois de ter enfrentado diretamente erros pastorais graves.
Esses nomes — minoritários, sem dúvida — não redimem o rumo do pontificado, mas mostram que a ação do Espírito Santo ainda sopra, mesmo em meio ao caos.
É verdade que, no plano doutrinal, litúrgico e pastoral, o atual pontificado está marcado por graves desvios, omissões e escândalos. Mas, ainda assim, seria injusto e impreciso rotular Francisco como “comunista” ou imaginar que sua crítica à economia moderna o coloca automaticamente fora do Magistério tradicional. Na realidade, quando se trata de denunciar os abusos do capitalismo, o Papa argentino fala uma língua que já foi falada — e com autoridade — por Papas como Leão XIII, Pio XI e Pio XII.
Muito do que Francisco denuncia — como a financeirização da vida, a idolatria do mercado, a escravidão moderna do trabalho informal e a destruição da dignidade humana pela lógica do lucro — não são invenções marxistas, mas ressonâncias diretas da Rerum Novarum (1891) de Leão XIII, da Quadragesimo Anno (1931) de Pio XI.
Leão XIII já advertia que deixar o trabalhador à mercê do mercado “livre” era uma nova forma de opressão, e defendia que o Estado e a sociedade tinham o dever moral de proteger os mais vulneráveis. Francisco repete isso, com sua linguagem peculiar, ao denunciar uma “economia que mata”.
A diferença é que os católicos de outrora compreendiam isso dentro de uma ordem cristã integral, enquanto hoje, até mesmo os católicos conservadores muitas vezes defendem o liberalismo econômico como se fosse doutrina católica — o que nunca foi.
Outro ponto justo da crítica econômica de Francisco é sua oposição ao globalismo financeiro, que destrói culturas, coloniza consciências e trata países pobres como mercados ou depósitos de mão de obra descartável.
Em suas viagens à África, à América Latina e em textos como Laudato Si’ e Fratelli Tutti, o Papa denuncia com clareza os abusos do capital internacional, a destruição das famílias pela lógica do consumo e a submissão das nações à chantagem das grandes corporações e organismos supranacionais.
São temas que, se fossem ditos por Pio XI em 1931, seriam aplaudidos por qualquer católico ortodoxo. Hoje, infelizmente, muitos não os reconhecem como parte da Doutrina Social da Igreja — e preferem jogar Francisco no mesmo saco de ideólogos marxistas, sem o devido discernimento.
Francisco não é comunista. Ele mesmo já afirmou isso diversas vezes. E de fato, não propõe a luta de classes, a estatização total da economia nem a abolição da propriedade privada — elementos essenciais do comunismo e ausentes em seus textos. O que ele critica é o materialismo burguês, o consumismo individualista e a cultura do descarte — exatamente como já fizeram os Papas do século XIX e XX.
A confusão ocorre porque a linguagem de Francisco é muitas vezes ambígua, e ele mesmo se cerca de figuras da esquerda internacional, o que enfraquece sua autoridade e confunde seus próprios fiéis. Mas a crítica à exploração econômica em si é legítima, católica e até necessária.
O tradicionalismo católico não é sinônimo de capitalismo sem freios. O próprio São Tomás de Aquino ensinava que a economia deve servir à virtude e ao bem comum, não ao enriquecimento de poucos. O distributismo de Chesterton, o cooperativismo católico, e as encíclicas sociais pré-conciliares formam uma visão de economia cristã que rejeita tanto o comunismo quanto o liberalismo moderno.
Nesse ponto, o Papa Francisco — ainda que envolto em uma retórica confusa e mal cercado por agentes da revolução cultural — ainda consegue ecoar verdades que vêm da Tradição.
Na crítica à economia do lucro, à tirania do mercado e à destruição da dignidade humana pelo capital impessoal, Francisco fala, talvez sem plena consciência, a voz da Igreja de sempre.
O fato de haver alguns lampejos de verdade — como fagulhas num campo devastado — não anula a gravidade da ruptura que este pontificado representa. O modernismo não é feito só de heresias explícitas: é uma névoa que mistura verdades com erros, fé com mundanismo, piedade com confusão. Essa é a estratégia mais perigosa do inimigo: dar migalhas da verdade para manter a ilusão de continuidade.
Portanto, embora um católico tradicionalista possa reconhecer esses episódios como “graças em meio à tempestade”, jamais poderá permitir que eles anestesiem sua consciência ou abafem a resistência àquilo que se opõe à fé imutável.
Sim, há exceções. Há sinais. Há espaços ainda abertos para a verdade. Mas não nos enganemos: enquanto a Tradição continuar sendo tratada como problema, e a modernidade como critério de julgamento, a crise seguirá se aprofundando.
As boas ações devem ser acolhidas com gratidão, mas sem perder a clareza de combate espiritual.
A fidelidade católica, hoje, exige discernimento sobrenatural: reconhecer a verdade onde ela aparece — sem jamais abandonar a integridade da fé que recebemos dos Apóstolos.
Mas uma ressalva importante:
Diante de tantos abusos, ambiguidades e escândalos promovidos ou tolerados por Francisco, a tentação do sedevacantismo — isto é, a crença de que o Papa Francisco não é o verdadeiro Papa, ou de que a Sé de Pedro está vacante desde João XXIII — pode parecer uma saída lógica, até mesmo reconfortante. Afinal, seria mais fácil simplesmente declarar que um herege não pode ser Papa e, com isso, encerrar o dilema. Mas essa postura, por mais compreensível que seja emocionalmente, é teológica e eclesiologicamente insustentável.
Nosso Senhor prometeu que as portas do inferno não prevaleceriam contra Sua Igreja (Mt 16,18). Isso não significa que a Igreja será sempre governada por santos ou doutores — significa que, mesmo em meio às piores crises, a Igreja visível continuará existindo, com sucessão apostólica válida e autoridade legítima.
O sedevacantismo, ao romper com a autoridade visível da Igreja, acaba por negar, na prática, essa promessa de Cristo. Se não há Papa, se não há bispos legítimos, se não há autoridade que possa ensinar, julgar ou ordenar — então a Igreja visível deixou de existir. Isso é, objetivamente, uma posição protestante travestida de zelo.
A Tradição da Igreja ensina que um Papa pode ser mau, confuso, herético em suas opiniões pessoais ou atos pastorais — e ainda assim permanecer validamente Papa, desde que não defina solenemente heresias ex cathedra. Já tivemos Papas como Honório I, João XXII e outros que causaram escândalos profundos, e nem por isso a Igreja deixou de reconhecê-los como legítimos Pontífices.
Francisco, por piores que sejam suas ações — e são gravíssimas — ainda não rompeu, formal e juridicamente, com a fé da Igreja de forma a invalidar seu ofício. Cabe a Deus julgá-lo, e não a nós. Nós não temos autoridade para declarar a Sé vacante. Fazer isso seria usurpar um juízo que só poderia caber a um concílio legítimo — algo hoje inviável sem um Papa vivo.
A experiência mostra que os sedevacantistas, embora motivados por desejo de pureza doutrinal, acabam caindo em divisões internas intermináveis. Uns reconhecem bispos sem jurisdição, outros criam suas próprias “linhas de sucessão” dúbias, e não há critério claro e objetivo para determinar quem é legítimo e quem não é. O resultado é uma multiplicação de “igrejinhas” tradicionalistas autônomas — cada uma julgando ser a única fiel.
Isso contradiz totalmente a natureza visível, una e apostólica da Igreja.
O católico não é um rebelde: é um filho fiel, que ama a Igreja com amor crucificado. Por isso, ele sofre dentro dela, mas não a abandona. Ele resiste ao erro com coragem, denuncia o escândalo com firmeza, mas permanece unido à estrutura visível da Igreja — mesmo que ocupada por homens indignos.
Essa é a atitude dos santos, dos mártires, dos confessores da fé ao longo dos séculos. Eles não criaram novas igrejas — resistiram na verdadeira.
A crise é real. O escândalo é profundo. O sofrimento é legítimo. Mas a resposta não é negar o Papa, nem declarar a Sé vacante por conta própria. A resposta é permanecer firmes na fé católica de sempre, rezando, resistindo, formando os filhos na doutrina verdadeira — e esperando, com confiança, que o Senhor, a seu tempo, restaurará a Igreja.
O sedevacantismo é um falso alívio — a cruz do verdadeiro católico tradicional é mais pesada, mas é a única que conduz à ressurreição.
O pontificado de Francisco foi, sem sombra de dúvida, um dos mais difíceis, confusos e devastadores da história moderna da Igreja. Para o católico que permaneceu fiel à doutrina de sempre, foi um tempo de sofrimento contínuo, escândalos repetidos e perplexidade moral quase constante. Ele promoveu ambiguidade teológica, favoreceu heresias práticas, puniu os fiéis da Tradição, recompensou os inimigos da ortodoxia e se fez porta-voz de um espírito mundano incompatível com o Evangelho de Nosso Senhor.
Foi um Papa que semeou confusão, não clareza; divisão, não unidade; relativismo, não doutrina. E por isso, será julgado diante de Deus com um peso imenso, pois a quem muito foi dado, muito será cobrado.
No entanto, apesar de tudo isso, e justamente porque a fé católica não se baseia em sentimentos, mas em verdades objetivas, é necessário afirmar, com clareza e sem medo: Francisco foi, sim, o Papa legítimo da Igreja Católica.
Foi validamente eleito. Ocupou a Cátedra de Pedro. Teve jurisdição. E por mais que tenha abusado de sua autoridade, por mais que tenha sido um mau pastor, a graça de Cristo sustentou a Igreja mesmo sob o peso de seus erros. Isso é prova não de sua virtude, mas da fidelidade de Deus à Sua promessa.
Não cabe a nós julgar o foro interno da alma de Francisco — mas cabe, sim, rezar por ele. Devemos rogar a Deus que tenha se arrependido de seus desvios e tenha recebido a misericórdia divina.
Rezar por ele não é minimizar seus erros — é ato de caridade e justiça. É reconhecer que, mesmo um Papa mau, permanece filho da Igreja. E que a oração pela alma de um pastor infiel pode ser o gesto que nos salva da dureza do nosso próprio coração.
Francisco foi um Papa ruim. Escandaloso. Destrutivo em muitos aspectos. Mas foi, até o fim, o sucessor de Pedro. E porque amamos a Igreja, rezamos também por aquele que a governou indignamente — para que Deus, em sua infinita justiça e misericórdia, trate dele como só Ele pode.
🕯️ Requiem aeternam dona ei, Domine. Et lux perpetua luceat ei.