Tiradentes é um dos personagens mais interessantes da história do Brasil. Ele foi transformado em herói no final do século XIX e no decorrer do século XX, tornando-se o único homem a ter um feriado em seu nome. Jornalistas, historiadores e acadêmicos em geral o tratam como um mártir que lutou pelo fim do domínio português sobre o Brasil, exceto por raras exceções. Mas o que realmente se sabe de Tiradentes a partir das fontes históricas?
Para quem se dedica ao estudo da história do Brasil, é evidente que Tiradentes, ou Joaquim José da Silva Xavier, foi um herói inventado por uma república impopular que surgiu em 1889. Foi necessário criar um suposto heroísmo para criar um sentimento mítico e simbólico de um Brasil buscando liberdade de um domínio tirânico, mesmo que esse não fosse o sentimento popular da época. A estratégia de legitimação da República passava por forjar e alterar o inconsciente coletivo de que eles eram vítimas de um atrasado sistema político e de governo que os oprimia. A história, ou estória, de um mártir perseguido por um atrasado, opressor e abjeto sistema monárquico parecia o script perfeito.
O Partido Republicano do Império havia elegido apenas dois representantes na última eleição do quadriênio anterior à queda do Império, não havia um grande movimento republicano organizado, apenas uma ou outra voz influente, como Ruy Barbosa — que viria a se arrepender do apoio a República — e Aristides Lobo, que disse a icônica frase: “O povo assistiu bestializado à Proclamação da República”, tentavam alimentar um desejo inexistente no povo brasileiro de extinguir a Monarquia. Foi preciso usar a baixeza de falsificar um favorecimento político de um algoz do Marechal Deodoro da Fonseca, Gaspar Martins, por Dom Pedro II para convencer o até então herói nacional, tendo sido merecidamente condecorado por feitos na Guerra do Paraguai, a levantar as tropas pelo golpe republicano. Era preciso convencer o mais respeitável e leal militar à Coroa para desencadear o golpe, o que conseguiram de forma vil.
A República surgiu da farsa e da malícia: latifundiários revoltados com o fim da escravidão, maçons de caráter iluminista radical e figuras públicas determinadas a utilizar os meios mais baixos e vis para chegar à República. Não custou nada inventar uma mentira, com Tiradentes e a Inconfidência Mineira não foi diferente.
Voltaram a história para um acontecimento pouco lembrado, esquecido até. A importância da Inconfidência Mineira foi hiperdimensionada em prol da farsesca narrativa. Não houve nem mesmo êxito momentâneo, como na Revolução Pernambucana de 1817, que ao menos instituiu um governo, mesmo que em apenas dois meses. A Inconfidência Mineira não chegou nem mesmo perto de uma vitória; foi mais uma conspiração iluminista e maçônica que desejava construir uma República laica e liberal em Minas Gerais. Aliás, ao estudarmos a Inconfidência, descobrimos que não havia vontade alguma de tornar o Brasil independente de Portugal. A ideia dos revolucionários era a independência da Capitania de Minas Gerais, com alguma abertura ao mar.
Como o personagem mais impactante — embora não fosse o líder — de um movimento que buscava destruir a unidade do Brasil pôde ser considerado um herói nacional? Comemora-se o dia de Tiradentes em São Paulo, Rio de Janeiro, Tocantins, Maranhão, etc., mesmo tratando-se de um separatista, não só de Portugal, mas do território brasileiro. Se a fatídica revolução obtivesse êxito, não haveria a literatura brasileira de Guimarães Rosa, Adélia Prado e Carlos Drummond de Andrade, assim como nós mineiros não poderíamos dizer que Machado de Assis e Ariano Suassuna são parte de nossa literatura; as históricas cidades de Ouro Preto e Mariana não seriam cidades históricas do Brasil. Rumaríamos o caminho de nossos vizinhos sul-americanos, seríamos repúblicas dispersas.
Os Inconfidentes eram orientados pela Maçonaria. Basta ler a obra de Joaquim Felicio dos Santos, um entusiasta da dita seita, “Memórias do Distrito Diamantino da Comarca do Serro Frio de 1824”, para verificarmos. Assim diz Felicio dos Santos:
“os conjurados eram, todos, iniciados na Maçonaria, introduzida por Tiradentes, quando por aqui passou, vindo da Bahia, para Villa Rica […] quando Tiradentes foi removido da Bahia, trazia instruções secretas da Maçonaria para os patriotas de Minas Gerais”.
Memórias do Distrito Diamantino da Comarca do Serro Frio, Joaquim Felicio dos Santos. Pág — 217; 253.
Eles foram motores, no Brasil, das revoluções burguesas e liberais do século XVIII. Eram os Inconfidentes, dotados do mesmo espírito dos revolucionários franceses e seus horrendos princípios: revolta contra a autoridade; destruição da confessionalidade católica do estado, criando, no hipotético independente estado de Minas Gerais, um laicismo indiferentista do ponto de vista religioso, consequentemente, indiferentista do ponto de vista moral, em alguns casos, havendo violência explícita contra a fé cristã; positivismo racionalista; dessacralização da ordem familiar, incluindo o matrimônio; liberdade como princípio absoluto. São um conjunto de princípios maus e desordenados condenados pela Igreja que Tiradentes e os Inconfidentes apregoavam. Graças a Deus, aquele péssimo movimento não se realizou.
A delação de Joaquim Silvério dos Reis, tratada como um ato de traição imperdoável, foi, na verdade, um livramento.
Se a Inconfidência via a Revolução Francesa positivamente — aliás, foi contemporânea a ela —, o mesmo não podemos dizer de Dona Maria I, a Piedosa, que teve algumas de suas parentes mortas pelas guilhotinas. Após o fracasso, ela perdoou os inconfidentes, embora o perdão a Tiradentes tenha sido dado no dia seguinte ao enforcamento.
Apesar do indiferentismo iluminista à religiosidade, que os inconfidentes compartilhavam, foi na imanentização de Jesus Cristo na figura de Joaquim José da Silva Xavier uma das principais formas de transformar Tiradentes em um “ídolo” nacional. Uma blasfêmia sórdida e mentirosa. Tiradentes era alferes, patente abaixo de tenente como militar e não possuía barba. Assim descreve Clério José Borges de Sant Anna o mito Tiradentes pelos primeiros governantes da República:
“A clássica imagem de Tiradentes (de barba e cabelo comprido) é fictícia. Ele nunca possuiu cabelos longos nem barba. Seja em sua época de militar (posto em que os membros do exército devem moderar a quantidade de pelos no rosto), seja em seu período na prisão (os pelos eram cortados para evitar piolhos), ou mesmo no momento de sua execução (todos os condenados à forca deveriam ter a cabeça e a barba raspadas). A lembrança de Tiradentes e de seu movimento tornou-se importante a ponto de receber interesse nacional a partir da Proclamação da República (15/11/1889). Nesse momento, os novos governantes (Marechal Deodoro e Marechal Floriano) necessitavam criar um novo país, com novos valores, novas ideias e, especialmente, uma nova história e novos heróis, dos quais todas as pessoas deveriam se orgulhar e se identificar. A imagem barbuda foi construída para se assemelhar à figura do condenado à de Jesus Cristo, aumentando seu tom de mártir, vítima e herói bondoso. Para fazer com que as pessoas pensassem: “da mesma forma que Cristo morreu pela humanidade, Tiradentes morreu para salvar o Brasil”. Todos se orgulhariam do sujeito, da terra que ele supostamente defendeu e procurariam espelhar-se em seu caráter heroico”.
Entrevista na TV Capixaba, do Espírito Santo, 21 de abril de 2008.
Até mesmo a morte de Tiradentes por enforcamento é questionável. O trabalho do historiador carioca Marcos Corrêa tem se dedicado a comprovar que Tiradentes não morreu enforcado, mas sim, foi levado à França por um juiz maçom. Assim diz uma matéria da Folha de São Paulo, publicada em 21 de abril de 1999, sobre as investigações de Corrêa:
“A desconfiança lhe surgiu em Lisboa, em 1969, quando Corrêa viu fotocópias de listas de presença na galeria da Assembleia Nacional francesa em 1793. Lá, estava a assinatura de José Bonifácio de Andrada e Silva, que era o objeto de suas pesquisas naquela época. Próximo a ele, também aparecia a de um Antonio Xavier da Silva. Funcionário do Banco do Brasil, Correa se formara em grafotecnia e, por acaso, havia estudado muito a assinatura de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes. Com o auxílio do amigo português professor Rodrigues Lapa, Correa confrontou as assinaturas de Antonio e Joaquim José: “a semelhança era impressionante”. […] Segundo ele, um ladrão, o carpinteiro Isidro de Gouveia, condenado à morte em 1790, assumiu a identidade de Tiradentes em troca de ajuda financeira à sua família, oferecida a ele pela maçonaria. Correa, ex-professor da Universidade Santa Úrsula, no Rio, cita testemunhas da caminhada de Tiradentes ao cadafalso que se diziam surpresas porque ele aparentava ter menos de 45 anos. Citando um livro de Martim Francisco Terceiro (“Contribuindo”, de 1921) e outro de Hipólito da Costa (“Narrativa da Perseguição”, de 1811), entre outros, Correa vai desfiando suas hipóteses. Tiradentes teria sido beneficiado por um dos juízes da Devassa, o poeta Cruz e Silva, que tinha sido amigo de muitos dos inconfidentes (Laura Mello e Souza diz que Cruz e Silva, na verdade, foi designado para endurecer o tratamento penal dado a seus ex-amigos).”.
Morte de Tiradentes tem Contestação, Folha de São Paulo, 21/04/1999.
Continuando a matéria, é descrito como Tiradentes viveu fora do Brasil:
“O juiz nunca mais voltou a Portugal, mas, segundo Correa, Tiradentes, sua amante (conhecida como Perpétua Mineira) e os filhos de Isidro de Gouveia embarcaram incógnitos na nau Golfinho, em agosto de 1792, para Lisboa. Correa fala de carta do desembargador Simão Sardinha, na Torre do Tombo, em Lisboa, na qual diz ter-se encontrado, na Rua do Ouro, em dezembro de 1792, com alguém parecido com Tiradentes, a quem conhecera no Brasil, que saiu correndo quando o viu. Pela teoria, Tiradentes voltou ao Brasil em 1806, abriu uma botica na casa da Perpétua Mineira, na rua dos Latoeiros (hoje Gonçalves Dias), e morreu em 1818.”.
Morte de Tiradentes tem Contestação, Folha de São Paulo, 21/04/1999.
A propaganda maçônica e republicana funcionou. Você pode perguntar a um cidadão comum deste país se conhece Arlindo Lúcio da Silva, Geraldo Rodrigues de Souza e Geraldo Baeta da Cruz, os três heróis pracinhas da Segunda Guerra Mundial que lutaram contra os nazistas na Itália, mas esse cidadão não os reconhecerá. Padre Antônio Vieira, um dos maiores missionários católicos do Brasil, defensor fervoroso dos indígenas, discursou sermões maravilhosos que influenciaram o barroco e a formação da identidade brasileira, o cidadão não o reconhecerá. São José de Anchieta, um dos santos que catequizaram o Brasil e educador dos tupis, também não será reconhecido pelo cidadão. Entretanto, se mencionar Tiradentes, o cidadão o reconhecerá: “lutou pela liberdade”, “lutou pela nossa independência”… Infelizmente, essa é uma das razões de sermos, em muitos sentidos, um país sem nação.