A história do Brasil está cercada de mentiras nas escolas, na imprensa e na cultura. Este artigo tem por propósito desmentir certas acusações sobre a formação do Brasil e sobre as relações entre portugueses e indígenas, repletas de afirmações falaciosas sobre genocídios, roubos e saques, que constroem vítimas e vilões à maneira “rousseauniana”: o índio bom selvagem corrompido pelo imperialista português.
A formação do Brasil não se deu por uma relação conflituosa e violenta entre portugueses e povos nativos, mas por uma aliança entre eles. Qualquer um que leia a brilhante obra do historiador Jorge Caldeira, “A História da Riqueza do Brasil”, verá ali uma relação harmoniosa entre os tupis e os portugueses. Uma dessas formas de aproximação se deu pela construção de laços familiares, já que eram oferecidas mulheres das tribos para se casar com portugueses, forma pela qual o povo tupi construía alianças com estrangeiros capazes de trazer benefícios consideráveis para as aldeias. Essa criação de laços trouxe benefícios compartilhados:
“A cultura tupi-guarani previa a absorção de forasteiros, segundo um costume bem definido, o qual era apenas uma dentre várias opções de relacionamento, como também o sacrifício ritual ou a escravização dos covardes. A aceitação de um estrangeiro se fazia, como já se viu, por um ato muito simples: o casamento de aliança com uma filha de chefe. E esse ato, num grupo em que, pelo costume, os homens vinham de fora e as mulheres eram educadas para receber em casa os homens de fora, era bem mais simples de ser arranjado quando envolvia indivíduos de plagas remotas. O grupo que aceitava o estrangeiro o fazia com o sentido costumeiro de firmar uma aliança com todo o povo do noivo – uma ideia à qual os negócios deram nova substância. Para merecer uma filha de chefe, o noivo deveria ser capaz de trazer progressos para todo o grupo – algo que os objetos de ferro ajudavam muito a materializar. Não demorou para que os detentores da maravilha fossem capazes também de obter uma segunda mulher – o que os alçava a um plano mais elevado no modo de governar tupi-guarani. A poligamia era em geral reservada àqueles capazes de produzir muito, lutar com valor e fazer novas alianças de casamento – em suma, restringia-se aos chefes. Quando surgiram europeus com acesso a excedentes de ferro – e isso era poder – muitos chefes vislumbraram a oportunidade de se aliarem aos controladores desses excedentes, recorrendo ao método a que estavam acostumados, ou seja, oferecendo-lhes as filhas em casamento ou – caso isso já tivesse acontecido – arranjando uma segunda mulher para o genro. Com isso asseguravam a prioridade nos benefícios eventualmente trazidos por conterrâneos do novo genro. O papel de genro do chefe foi aquele no qual acabaram se enquadrando todos os estrangeiros bem-sucedidos nos negócios. Em cada porto onde se deu um arranjo desse tipo, um ou alguns poucos europeus, apoiados nessas alianças, foram capazes de organizar um fluxo comercial no qual os elementos básicos, num primeiro momento, foram, de um lado, os utensílios de ferro e, de outro, o pau-brasil. Para eles, os ganhos eram evidentes: como o ferro custava bem menos do que o pau-brasil, era possível ter um bom lucro na transação. Mas seria também um bom negócio para os membros de uma sociedade na qual não tinha sentido acumular bens? Para os nativos, os utensílios de ferro valiam muito pelo que poupavam de trabalho e pelo poder que conferiam. A tarefa mais dura que cabia aos homens era a de abrir as roças, cortando árvores com machados de pedra. A empreitada levava dias com os instrumentos tradicionais – em vez de horas com um machado de ferro. Mesmo que os tupi não tivessem interesse econômico em sempre aumentar mais a produção, a troca de ferramenta já valeria pelo tempo de trabalho poupado – que poderia ser dedicado a mais bem viver.”
Caldeira, Jorge. História da riqueza no Brasil – 1. ed. – Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2017. Pág 34-35
Os índios brasileiros possuíam uma tecnologia muito rudimentar, e um dos fatores que levaram a essas alianças foi o intercâmbio tecnológico. O índio brasileiro que desmatava usando fogo ou pedras para caça, agricultura e habitação — algo que a esquerda oculta — com os portugueses teve acesso a ferramentas de metal como o machado e o facão, que permitiam que o desmatamento ocorresse em maior escala e de forma mais eficiente. Os cães trazidos pelos portugueses dinamizavam a caça. Eles ajudavam a rastrear e capturar presas, aumentando a eficiência da caça e fornecendo uma fonte mais consistente de alimento. Além disso, os cães também atuavam como guardiões das aldeias, ajudando a proteger contra intrusos e predadores.
Nada de racista, Portugal constituiu famílias nobres e ricas frutos da mestiçagem luso-tupi:
“Alguns historiadores dizem que, antes de entregar o Regimento a Tomé de Sousa, D. João III escreveu uma carta a Diogo Álvares Correia, o Caramuru. Sem nenhum cargo formal de governo, ele sustentava as alianças essenciais com os tupi a partir de seus casamentos. Pelas alturas de 1549, era já um homem rico – e algumas de suas filhas, especialmente aquelas tidas com Guaibimpará, agora Catarina Paraguaçu, estavam casadas com homens ricos. Tudo isso se constituía em poder – que foi reconhecido pelo monarca, tenha ou não escrito a carta. Assim que desembarcou, o novo governador fez, em nome do rei, aliança com a família luso-tupi. Três dos filhos homens do casal foram nobilitados quase no ato do desembarque, alçados a membros da nobreza togada. Logo em seguida, alguns recém-chegados abastados e prestigiosos casaram-se com filhas do casal. Assim se constituiu muito rapidamente uma ocupação econômica. As terras para a agricultura foram distribuídas sem atritos com os territórios das aldeias aliadas, e os utensílios de ferro chegaram ali em abundância.”
Caldeira, Jorge. História da riqueza no Brasil – 1. ed. – Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2017. Pág 66
Uma das razões que levavam a uma relação consideravelmente harmoniosa entre portugueses e tupis, muitas vezes ocultada pela historiografia, é explicada pelo historiador José Francisco da Rocha Pombo: os costumes dos índios tupis guardavam certas semelhanças com modos de arranjos familiares dos europeus, incluindo uma preponderância de relações monogâmicas, relação patriarcal, noção de castidade e punição para certos pecados cristão. Rocha Pombo traça uma semelhança entre o modo de vida tupi e os antigos povos germânicos indo-europeus:
“Tanto entre os germanos como entre os tupis: o guerreiro vive sempre armado; a grande virtude é o valor militar; a regra da união conjugal é a monogamia; a hospitalidade é proverbial nos lares; ausência de propriedade individual. Entre uns e outros eram punidos: o homicídio, o adultério, a mentira, a perfídia, a deserção e o roubo; estavam perfeitamente fixadas as relações jurídicas entre o pai e o filho, entre o senhor e o escravo, entre as famílias da mesma taba, entre as tabas ou tribos da mesma nação, e até entre nações diferentes.”
Pombo, Rocha. História do Brasil. 8ª ed., revista e atualizada por Hélio Vianna, Edições Melhoramentos, 1958. Pág: 27
Sobre os costumes indígenas semelhantes aos cristãos europeus:
“A monogamia era a regra; e quando excepcionalmente tomava um chefe mais de uma mulher, a autoridade doméstica pertencia à primeira esposa, e por esta se regulava a sucessão paterna. Em geral, aos 25 anos devia o rapaz casar-se; e até essa idade, conservava-se casto. A rapariga só podia casar depois que era mulher.”
Pombo, Rocha. História do Brasil. 8ª ed., revista e atualizada por Hélio Vianna, Edições Melhoramentos, 1958. Pág: 31
Portanto, não houve, de fato, um apagamento, mas uma aliança de povos com similaridades notáveis. Não só as relações familiares eram semelhantes em muitos pontos e o casamento era instrumento de alianças entre indígenas, especialmente tupi-guarani, e portugueses, como a própria crença religiosa dos povos nativos detinha certa semelhança. Rocha Pombo nos fala de Tupã, Deus Supremo dos nossos índios:
“Não é mais possível duvidar de que no espírito do bárbaro o signo Tupã tivesse um valor equivalente ao do nome Deus no espírito do homem civilizado. Como Deus para este, é Tupã para o selvagem o ser supremo, absoluto, misterioso, incompreensível em si mesmo, mas que se manifesta na luz, nas claridades do céu, na fulguração do relâmpago, na chama, no sol, fonte universal da vida.”
Pombo, Rocha. História do Brasil. 8ª ed., revista e atualizada por Hélio Vianna, Edições Melhoramentos, 1958. Pág: 28-29
Não à toa, diversas figuras notáveis entre os índios se converteram ao reconhecer em Tupã o Deus cristão de que falavam os jesuítas. Não se tratou, então, de uma imposição semelhante à de uma teocracia muçulmana árabe, mas do mais belo projeto evangelizador da história cristã. A aculturação jesuíta não só os catequizou, como também aperfeiçoou as características daquele povo, incluindo o idioma, que ganhou complexidade e alfabeto. A Ave Maria era rezada no idioma indígena em muitos casos. Assim, por São José de Anchieta, o índio rezava em tupi:
“Ave Maria graça reçê
Tynycemba’e
Nde irũnamo Iandé Iara rek
“Nde irũnamo Iandé Iara rekóu
Imombe’u-katu-pýramô ereikó kunhã suí
Imombe’u-katu-pýra bé nde membýra Iesu
Sancta Maria Tupã sy etupãmongetá
Oré iangaipaba’e reçé coýr
Irã oré iekýi oré rumebé
Amen”
Um desses grandes convertidos indígenas era Tibiriçá, o cacique-rei da tribo dos guaianases, que lutou bravamente na Guerra de Piratininga contra índios carijós violentos e inimigos da união entre as diversas tribos indígenas e os portugueses que formaram a cidade de São Paulo. De Tibiriçá, João Ramalho, português e genro de Tibiriçá, e Bartira, filha de Tibiriçá e esposa de João Ramalho, tem-se a fundação da dinastia dos mamelucos — caboclos filhos de portugueses e indígenas — dinastia que viria a se conhecer como Bandeirantes, os desbravadores.
Quantas vezes você já ouviu que os Bandeirantes eram brancos, europeus e racistas?
Houve abusos em determinados casos? Houve! Entretanto, a visão que o português tinha dos povos que aqui viviam era de almas a serem salvas, cumprindo a lenda maior da nação portuguesa, a missão dada por Cristo a Portugal no momento de sua fundação em Ourique para Dom Afonso Henriques:
“Eu sou o fundador e destruidor dos reinos e dos impérios, e quero em ti, e nos teus descendentes, fundar um império para mim, pelo qual o meu nome seja levado às nações estranhas.”
E assim Portugal cumpre sua missão. E o desejo de conversão como propósito se vê na carta de fundação do Brasil, nossa certidão de nascimento, a Carta de Pero Vaz de Caminha, que em tom elogioso àquele povo, diz ao rei de Portugal:
“Parece-me gente de tal inocência que, se nós entendêssemos a sua fala e eles a nossa, seriam logo cristãos, visto que não têm nem entendem crença alguma, segundo as aparências. E portanto se os degredados que aqui hão de ficar aprenderem bem a sua fala e os entenderem, não duvido que eles, segundo a santa tenção de Vossa Alteza, se farão cristãos e hão de crer na nossa santa fé, à qual praza a Nosso Senhor que os traga, porque certamente esta gente é boa e de bela simplicidade. E imprimir-se-á facilmente neles qualquer cunho que lhe quiserem dar, uma vez que Nosso Senhor lhes deu bons corpos e bons rostos, como a homens bons. E o ele nos para aqui trazer creio que não foi sem causa. E portanto Vossa Alteza, pois tanto deseja acrescentar a santa fé católica, deve cuidar da salvação deles. E prazerá a Deus que com pouco trabalho seja assim!”
A Carta, de Pero Vaz de Caminha
Fonte:
Carta a El Rei D. Manuel, Dominus : São Paulo, 1963
Em comparação com a visão protestante de colonização, o tratamento dado pela nação protestante norte-americana aos índios partia da visão de inferioridade intrínseca daqueles povos. Assim diz a historiadora Betty Wood:
“Os puritanos passaram a interpretar o comportamento dos nativos de modo a reforçar sua imagem de ‘bárbaros’ ou ‘incivilizados’. Estes não só ameaçavam a civilização inglesa como punham em risco a própria sociedade puritana. […] Os colonos passaram a dizer que os nativos teriam recebido a custódia da terra de Deus, mas eram ‘incapazes de ter noção exata das finalidades para as quais ela foi criada’, de modo que ‘podiam ser declarados como tendo perdido o direito sobre a terra onde estavam’.”
Betty Wood, The origins of American slavery. Nova York: Hill and Wang, 1997. Pág: 99-100
Daí se proibiu relações inter-raciais e houve guerras de extermínio nos Estados Unidos. Os portugueses e povos indígenas formaram arranjos familiares. O Brasil se tornou mestiço. E essa mestiçagem não é algo restrito aos mais vulneráveis, pois aqui se formaram famílias nobres luso-tupi. E essa mistura se aprofundaria com o tráfico negreiro.
Formou-se um novo povo a partir do índio do paleolítico, o negro do neolítico e o português ibero-católico civilizado.