A história do pensamento moderno, desde Ockham, é marcada pela negação das essências. Essa negativa se acentua na era chamada pós-modernidade. O pensamento pós-moderno é evidente em autores neomarxistas como Jacques Derrida, Félix Guattari, Michel Foucault e, principalmente, Jean-Paul Sartre. Este último estabeleceu as bases teóricas do pensamento hegemônico pós-modernista, expressas em sua teoria fenomenológica do Ser, na obra “O Ser e o Nada”. Nela, Sartre constrói a ideia de uma condenação do homem à liberdade, além disso, afirma a essência humana não como algo intrínseco ao Ser, mas como fenômeno modular, desenvolvido ao longo da experiência humana. O homem, para Sartre, primeiro existe e, a partir da existência, molda sua essência.
Sartre concebe o homem aspirando a “ser Deus”, uma metáfora para a busca humana por uma existência absoluta e perfeita. Contudo, para Sartre, Deus não existe: os seres humanos surgem primeiro (existência) e, em seguida, definem a si mesmos (essência), sem um plano divino subjacente. Cada indivíduo é totalmente responsável por definir seu próprio propósito e natureza. A filosofia existencialista nega a existência de uma ordem moral absoluta e divina, defendendo que os seres humanos são livres para criar seus próprios sistemas de valores e significados. Sartre afirma que o homem é livre quando “nadifica”: “o único ser que podemos chamar de livre é aquele que nadifica seu ser”. Assim, o filósofo pós-moderno vê o homem como um Ser existente, porém, essencialmente, nada, moldado pela subjetividade.
Assim disse Sartre em “O Ser e o Nada”:
Porém, dir-se-á, sendo assim, se o homem em seu próprio surgimento é conduzido rumo a Deus como seu limite, se não pode escolher ser senão Deus, que acontece com a liberdade? Por que a liberdade nada mais é do que uma escolha que cria suas próprias possibilidades, ao passo que, aqui, parece que o projeto inicial de ser Deus que “define” o homem assemelha-se bastante a uma “natureza” humana ou a uma “essência”. Responderemos dizendo precisamente que, se o sentido do desejo é, em última análise, o projeto de ser Deus, o desejo jamais é constituído por tal sentido, mas, ao contrário, representa sempre uma invenção particular de seus fins. Com efeito, esses fins são perseguidos a partir de uma situação empírica particular; e é inclusive esta perseguição que constitui em situação os arredores. O desejo de ser sempre se realiza como desejo de maneira de ser. E esse desejo de maneira de ser, por sua vez, exprime-se como o sentido de miríades de desejos concretos que constituem a trama de nossa vida consciente. Assim, encontramo-nos frente a arquiteturas simbólicas muito complexas e que estão, pelo menos, em três níveis. No desejo empírico, posso discernir uma simbolização de um desejo fundamental e concreto que é a pessoa e que representa a maneira como esta decidiu que o ser estará em questão em seu ser; e esse desejo fundamental, por sua vez, exprime concretamente e no mundo na situação singular que envolve a pessoa, uma estrutura abstrata e significante que é o desejo de ser em geral e deve ser considerada como a realidade humana na pessoa, como aquilo que constitui sua comunhão com o Outro, como aquilo que permite afirmar que há uma verdade do homem e não somente individualidades incomparáveis. A concretitude absoluta, e a completeza, a existência como totalidade, pertencem portanto ao desejo livre e fundamental, ou pessoa. O desejo empírico não passa de uma simbolização do mesmo: a ele remete e dele extrai seu sentido, mantendo-se parcial e redutível, pois é o desejo que não pode ser concebido de per si. Por outro lado, o desejo de ser, em sua pureza abstrata, é a verdade do desejo concreto fundamental, mas não existe a título de realidade. Assim, o projeto fundamental, ou pessoa, ou livre realização da verdade humana encontra-se por toda parte, em todos os desejos (com as restrições indicadas no capítulo precedente acerca dos “indiferentes”, por exemplo); jamais é captado a não ser através dos desejos —assim como não podemos captar o espaço salvo através dos corpos que nos informam a seu respeito, ainda que o espaço seja uma realidade singular e não um conceito —; ou, se preferirmos, tal projeto fundamental equivale ao objeto de Husserl, que só se revela por ”Abschattungen” e, todavia, não se deixa absorver por nenhuma Abschattung. Depois dessas observações, podemos compreender que a estrutura abstrata e ontológica “desejo de ser”, se bem que representa a estrutura fundamental e humana da pessoa, não poderia ser um entrave à sua liberdade. Com efeito, como demonstramos no capítulo precedente, a liberdade é rigorosamente igual à nadificação: o único ser que podemos chamar de livre é o ser que nadifica seu ser. Sabemos, além disso, que a nadificação é falta de ser e não poderia ser de outro modo. A liberdade é precisamente o ser que se faz falta de ser. Mas, uma vez que o desejo, conforme estabelecemos, é idêntico à falta de ser, a liberdade só poderia surgir como ser que se faz desejo de ser, ou seja, como projeto-Para-si de ser Em-si-Para-si. Alcançamos aqui uma estrutura abstrata que de forma alguma poderia ser considerada a natureza ou a essência da liberdade, pois a liberdade é existência, e, nela, a existência precede a essência; a liberdade é surgimento imediatamente concreto e não se distingue de sua escolha, ou seja, da pessoa. Mas a estrutura considerada pode ser chamada de a verdade da liberdade, ou seja, é a significação humana da liberdade.
O ser e o nada – Ensaio de ontologia fenomenológica I Jean-Paul Sartre;
tradução de Paulo Perdigão. 20. ed. – Petrópolis, RJ :Vozes, 2011. Pág: 693-695.
Diante dessas considerações, as loucuras pós-modernas se revelam: não há essência no homem, tudo é moldado pela liberdade humana. Lev Vigotsky, psicólogo soviético, teorizou sobre a construção social; assim como Sartre, afirmava que não há essência, mas sim construção social. Simone de Beauvoir, a amante mal-amada de Sartre e radical feminista, proclama que não se nasce mulher, torna-se mulher, e o mesmo vale para os homens. Jorge Scala, comentando o existencialismo ateu de Beauvoir, explica:
Simone de Beauvoir contribui com uma ideia-chave: não se nasce mulher, mas você se toma mulher, não se nasce homem, mas você se toma homem. O gênero seria uma construção sociocultural, realizada através da experiência; e a experiência feminina seria a de ter sido dominada ao longo da história. Portanto, as hierarquias deveriam ser eliminadas em todas as instâncias da vida privada e pública, impondo-se relações igualitárias entre seres humanos diferentes”. Firestone, feminista canadense, propõe: “Para organizar a eliminação das classes sexuais é necessário que a classe oprimida se rebele e assuma o controle da função reprodutiva […], pelo que o objetivo final do movimento feminista deve ser diferente do que teve o primeiro movimento feminista; isto é, não apenas a eliminação dos privilégios masculinos, mas da própria diferença entre os sexos; assim, as diferenças genitais entre os seres humanos nunca mais teriam nenhuma importância.
SCALA, J. Ideologia de Gênero: o neototalitarismo e a morte da família. 2. ed. Trad. Lyège Carvalho. São Paulo: Katechesis, 2015. Pág: 20.
O existencialismo de Sartre criou as bases para as loucuras pós-modernas, onde tudo é subjetivo e relativo, embora haja, na pós-modernidade, um certo moralismo irracional. A pós-modernidade produz julgamentos morais, mas nega a moral absoluta, pois, na lógica sartreana, a moral não existe, não há princípios metafísicos superiores a limitar o homem. Sartre inspirou-se em “Os Irmãos Karamazov” de Dostoiévski, onde o escritor russo detalha o diálogo de Ivan, o irmão ateu: “[…] é permitido a todo indivíduo que tenha consciência da verdade regularizar sua vida como bem entender, de acordo com os novos princípios. Neste sentido, tudo é permitido […] Como Deus e a imortalidade não existem, é permitido ao homem novo tornar-se um homem-deus, seja ele o único no mundo a viver assim.”. Portanto, o homem pode tudo; ele molda tudo e não há nada que transcenda o homem, nem mesmo uma moralidade intrínseca, ou como afirma a teologia cristã: todo ser humano no mundo tem um conhecimento inato de Deus e um conhecimento inato da lei moral de Deus. Não há essência, portanto, não há moral. Entretanto, na pós-modernidade, a premissa do existencialismo é colocada como princípio moral. Isso é evidente na ideologia de gênero. A ideologia de gênero (que é existencialista) nega a essência essencialmente masculina ou feminina do ser humano. O ser nascido biologicamente homem se torna mulher, e agora, afirmar que não é mulher se torna um crime, um delito grave, punido com máximo rigor do poder estatal. Isso talvez demonstre o erro que Sartre não identificou: que a moralidade é algo intrínseco à natureza humana e que seu pensamento, que moldou a segunda metade do século XX e molda o século atual, seria, de alguma forma, absorvido por um moralismo, mesmo sendo contraditório ao seu próprio pensamento.
Sartre foi o autor mais popular de sua época, suas palestras lotavam salões parisienses. Ele foi um exemplo único de um filósofo popstar que atraía multidões para discutir assuntos como fenomenologia, ontologia e o Ser. Em “Os Intelectuais” (um livro delicioso de ler, com uma das descrições mais engraçadas sobre a vida de Sartre), Paul Johnson explica bem o porquê a filosofia de Sartre se tornou tão popular na geração pós-guerra:
O existencialismo”, disse Sartre, “define o homem por suas ações. […] Diz a ele que a esperança consiste na ação e que a única coisa que permite ao homem viver é a ação.” Assim, “o homem se compromete com sua vida e, desse modo, constrói sua imagem, para além da qual nada existe”. O novo europeu de 1945, segundo Sartre, era o novo indivíduo existencialista – “sozinho, sem perdão. É isso que quero dizer quando afirmo que estamos condenados a ser livres”. Portanto, a nova liberdade existencialista de Sartre era extremamente atraente para uma geração desiludida: solitária, austera, nobre, um tanto agressiva, até violenta, e antielitista – ninguém estava excluído. Qualquer um, especialmente os jovens, podia ser um existencialista.
Os inte’;:ctuais I Paul Johnson: tradução de André Luiz Barros da
90-0681
Silva.- Rio de Janeiro: !mago Ed., 1990. Pág: 254.
A liberdade de Sartre, desordenada e irracional, que nega a própria natureza humana, é a liberdade da sociedade contemporânea. É a liberdade do homem de negar a si próprio, sua natureza, a crença de que essa natureza não existe. É um homem amoral. O existencialismo, em seu anti-essencialismo e antissubstancialismo e na absolutização da subjetividade humana, tem como consequência o subjetivismo de toda forma moral. Não saberíamos se algo é bom ou mal, certo ou errado, pois são irreais e moldadas pelo próprio indivíduo – eu faço meus valores; eu tenho meus princípios; levado às últimas consequências, não há moral, eu posso fazer o que quiser. Sartre lutou na Segunda Guerra Mundial contra o Eixo e as barbaridades imorais de Hitler, mas seu pensamento não nos leva a ver o nazismo como algo imoral, perverso, demoníaco, vil. Podemos dizer que Hitler não via nenhum princípio moral acima de si, não havia um Sumo Bem acima de Hitler; ele produziu sua essência, sua liberdade absoluta, e a ação dessa liberdade o levou a usá-la para o Holocausto. Mas não podemos julgá-lo, pois não existe moral, não existe uma moralidade na própria consciência humana, na sua natureza; o que existe era Hitler, e ele moldou sua essência, seus valores. É uma filosofia perigosíssima.
Os males visíveis na sociedade ocidental, decorrentes dessa ideia nefasta que é o existencialismo, são muitos:
- Legalizamos o aborto porque a mulher deve ter total liberdade para decidir sobre seu corpo, mesmo que isso implique em prejudicar outro corpo. E a crítica moral ao aborto? A moral não existe, é uma construção subjetiva, coisa de religiões que acreditam na existência de um propósito para o homem, em valores morais absolutos e na Lei de Deus no coração humano; uma visão bem existencialista sobre o problema moral do aborto.
- Estabelecemos a ideologia de gênero como dogma social. Como disse Beauvoir, ninguém nasce mulher, torna-se uma; ninguém nasce homem, torna-se um. Ou, em outras palavras, ninguém nasce com uma natureza definida, molda-se pela experiência. Conforme Jorge Scala explica: “1) cada pessoa interpreta o que é ser homem ou mulher como desejar, podendo alterar essa interpretação sempre que achar conveniente; 2) cada um pode escolher, aqui e agora, se quer ser homem ou mulher – com o conteúdo subjetivo que atribuiu a esses termos – e mudar de decisão quantas vezes quiser. Deve-se ressaltar que não apenas cada um pode definir sem limites o conteúdo da masculinidade e da feminilidade, mas também pode praticá-lo sem limites.”. E na contradição já mencionada – quando o existencialismo amoral se torna moralista –, todos são obrigados a reconhecer essa subjetividade ou enfrentarão punição social, seja por meio de coerção estatal, seja por isolamento, expurgo e linchamento público.
- A plena liberdade, segundo Sartre, como o único absoluto existencial, e os elementos adicionais da tese sartriana elaborados por Beauvoir, fundamentam todo o movimento feminista contemporâneo. O casamento, visto como resquício de um passado que considerava a metafísica como real, fundamentava-se como um sacramento, uma cerimônia sagrada. Porém, no pensamento existencialista, profundamente materialista, o casamento é visto como um nada, uma construção social limitante e escravizadora, com ênfase na escravidão feminina descrita por Beauvoir. No feminismo existencialista, a destruição da família e do casamento, apesar de impopular, é promovida implicitamente. Ninguém na cultura moderna se declara inimigo da família e do casamento; mesmo assim, defende-se o divórcio como um ato normal – que, em essência, é a destruição máxima da família e do casamento –, despreza-se mulheres que optam pelo cuidado do lar e dos filhos e não desejam entrar no exigente mercado de trabalho, e a sociedade cada vez mais rejeita a maternidade na prática. Não é por acaso que, em praticamente todos os países ocidentais, especialmente na Europa, as taxas de natalidade estão em níveis alarmantemente baixos.
- Levamos a libertinagem sexual às últimas consequências. A revolução sexual, influenciada pelo existencialismo, libertou a humanidade de costumes e tradições repressivos, concedendo à mulher, principalmente, o direito de expressar sua sexualidade livremente, sem amarras sociais. Curiosamente, fenômenos sociais criticados pelas feministas atuais são consequências dessa libertação: a gravidez indesejada – reflexo de um processo de dessacralização da relação sexual e do abandono do princípio da finalidade primordial do sexo para a reprodução e geração da vida – e o abandono paterno – com o sexo desvinculado da família e do matrimônio, tornando-se um elemento livre, casual e aberto, levou a homens se relacionando sexualmente com mulheres desconhecidas por mero prazer, e, sendo a reprodução intrínseca à natureza humana, filhos são gerados, muitas vezes sem reconhecimento paterno, ou, dada a casualidade, sem que o pai saiba da existência do filho. Estes são problemas sociais exacerbados pela revolução. Valeu a pena, feministas? Indo mais longe, o falecido Professor Olavo de Carvalho dizia que o próximo movimento revolucionário no âmbito moral desses agentes seria a legalização da pedofilia. Dado que a liberdade é absolutizada pelo existencialismo, que os precursores (Sartre e Beauvoir) dessa tese eram militantes pró-pedofilia e que suas ideias são as ideias por trás da sociedade atual, isso não é algo distante do horizonte.
Vivemos cada vez mais uma cultura secularizada, onde o homem já não crê em Deus, não acredita em um princípio metafísico superior e em um propósito, vendo-se como um ser anulado e crendo ser livre de todas as amarras familiares, culturais e religiosas, aceitando o que é imoral, desordenado e antinatural em prol de uma liberdade absoluta: liberdade para abortar (matar o próprio filho); liberdade para ser o que não é (ideologia de gênero); liberdade para a irresponsabilidade, para a ausência da família e da religião; liberdade para a libertinagem sexual.
A crise moral do Ocidente tem raízes no existencialismo, a pior produção filosófica do século XX, que, infelizmente, teve êxito.