Em 2007, a dupla sertaneja que o Brasil consagrou Jorge e Mateus escreveu essa música para uma amada que vive na Argentina. Coincidentemente ou não, foi no mesmo ano que Néstor Kirchner cedeu seu lugar na presidência de Los Hermanos à sua esposa Cristina. Na época, o Peso Argentino era negociado na região de R$1.50. No dia 05.02.2021, ele fechou a R$16.35. Uma desvalorização de quase 1000% ante a moeda brasileira, que está longe de ser a mais estável do mundo. O que aconteceu de lá pra cá com os hermanos para mergulharem em uma crise econômica tão grande, cujo reflexo no câmbio é apenas um exemplo didático?
Atualmente, Cristina Kirchner é vice-presidente de Alberto Fernandez, eleito em 2019 após impedir a reeleição do empresário Maurício Macri, ex-prefeito de Buenos Aires e ex-presidente do tradicionalíssimo clube de futebol Boca Juniors, que fez um governo extremamente decepcionante (para não dizer patético) quando comparado à agenda liberal que representava (as coincidências com o atual momento do Brasil me preocupam muito). Nos 8 anos em que esteve no cargo principal, Cristina ficou marcada por políticas econômicas heterodoxas, fazendo muitos projetos sociais com muita dívida e emissão de moeda, em um esquema parecido com a passada do PT pelo governo brasileiro.
Tal situação não é nova para os compatriotas de La Pulga: nos 70 anos que se passaram desde 1950, a Argentina teve contração econômica em 24 deles, perdendo apenas para a República Democrática do Congo, segundo dados do Banco Mundial. Foi desenvolvido um ciclo no qual os líderes gastam mais do que o governo arrecada, forçando-os a emitir títulos de dívida. Esse efeito dominó geralmente termina com inflação alta, recessão e, às vezes, uma crise da dívida. Em 2001, a Argentina deu o calote em US$95 bilhões em títulos soberanos, um recorde na época. Os mercados de títulos parecem esperar outra crise em breve. Politicamente, o país oscilou entre governos pró-mercado e os mais populistas. Isso trouxe reversões de políticas que tornam muito difícil o investimento a longo prazo. As leis tributárias foram modificadas 80 vezes desde 1988, enquanto as regras fiscais foram alteradas 14 vezes. Houve 61 presidentes de bancos centrais nos 84 anos da instituição. O resultado é uma economia que não corresponde ao país, com vastos recursos naturais e população com alto nível de escolaridade.
Agravada pela pandemia do Coronavírus, a atual situação da economia argentina revela uma inflação que subiu 40% nos últimos 12 meses, já sendo ponderado aqui o controle de preços feito pelo governo no final de 2020. Ou seja, quando relaxar, o buraco certamente estará bem mais embaixo. Além disso, uma alta queda do emprego faz a pobreza ultrapassar 40% da população e as projeções de queda do PIB rondar os 12%,o pior número entre todos os países do G20. Como se já não fosse o bastante, uma série de medidas erradas do governo argentino, resumida na sempre péssima decisão de tributar grandes fortunas, fez capital estrangeiro migrar para países vizinhos (exatamente, foi tudo para o Uruguai, pois o Brasil também não está muito melhor), causando um descasamento de mais de 100% entre a cotação oficial do peso argentino e a cotação de mercado da moeda.
Junto com uma crise que se compara ao corralito bancário de 2001, quando o presidente da época Fernando de la Rúa abandonou de helicóptero às pressas a Casa Rosada, sede do governo argentino, para fugir de uma multidão enfurecida com uma brutal retração econômica, uma onda de descrédito generalizado na política e um colapso moral e institucional, deixando o país bem próximo a uma guerra civil, é impossível não se enxergar distorções econômicas grandes: Segundo o jornal El País, os restaurantes, bares, salões de festas e academias que não baixaram as portas após meses de fechamento obrigatório para evitar a propagação da covid-19 se transformaram em quitandas, lojas de ferragens ou de brinquedos. O jornal cita o caso de Federico Cillarroca que, para honrar as cerca de 30 famílias que dependem diretamente do seu negócio, passou a vender os brinquedos de seu salão de festas.
Luis, dono de um comércio para pets, afirma que: “Não posso comprar dólares, então, estoco mercadorias. No ano passado já vimos isso, o peso desvalorizou-se em 20% e de um dia para o outro essa perda foi transferida para os preços”.
Sem acesso aos mercados de crédito internacional até que o Governo negocie a dívida com o Fundo Monetário Internacional (famoso FMI), a Argentina financia a paralisação econômica da pandemia com a emissão de moeda. Somente no primeiro semestre, o Banco Central emitiu mais de 1,35 trilhão de pesos (98,3 milhões de reais) para cobrir o déficit fiscal e financiar subsídios, como a Renda Familiar de Emergência, o Auxílio Emergencial deles, distribuído a nove milhões de pessoas.
As expectativas de crescimento deste ano se baseiam em gastos públicos, provavelmente financiados por Deus, Jesus, Alá, Buda, Maomé ou algum outro santo religioso, visto que a economia não apresenta crescimento desde 2010, o risco país se encontra em níveis recordes, fazendo com que sua rolagem de dívida custe proibitivos 12%a.a. (hoje, esta taxa no Brasil roda em torno de 7.5%a.a, mas já foi superior a 14%a.a.) e, mesmo com as duas fábricas de cédulas do peso argentino ligadas 24-7, a Argentina teve que importar 400 milhões de notas do Brasil, dada a demanda que o governo possui para tal. A hipótese de criar cédulas de valores mais altos já foi cogitada, mas é postergada numa vã ilusão de que tal anúncio possa piorar ainda mais as coisas por lá.
Falei bastante da Argentina hoje, mas saibam: Brasil de nosso senhor, terra do amor, não está muito distante disso. Não só porque os hermanos são nossos parceiros comerciais mais próximos, fazendo parte desse relevantissíssimo bloco econômico do MERCOSUL, mas também porque algumas coisas não me passam despercebidas: há tempos, o IPCA não reflete a real perda de poder de compra do brasileiro, nota de R$200 em circulação (sem o vira lata caramelo, o que é o maior absurdo), dólar dobrando de preço, empresas saindo do país, recuperação econômica lenta demais (ainda que a B3 queira nos dizer o oposto),…
Não quero aqui ser um teórico do apocalipse para Brasil, Argentina ou mesmo o México, que também enfrenta situação parecida, mas algo não vem certo na América Latina já há algum tempo, a pandemia só escancarou tudo isso. Commodities, turismo e belas paisagens são boas oportunidades, mas aparentemente insuficientes para o progresso a longo prazo. Aconselharia Jorge e Mateus a buscar a amada logo, a tempestade talvez ainda dure alguns bons anos. Tenho medo quando tudo voltar a abrir.
1 comentário
Otimo artigo, tenho pesquisado o assunto, gostaria de
algumas indicações para poder importar produtos para
revender.