Nos últimos anos poucos temas foram tão discutidos quanto a crescente polarização das sociedades no mundo ocidental, filósofos, sociólogos e cientistas políticos examinaram tal fato e chegaram a algumas possibilidades. A guinada identitarista da esquerda teria produzido uma guinada tradicionalista na direita? Uma espécie de cabo de guerra entre progressistas e conservadores estaria corroendo o tecido social e esvaziando as posições moderadas no espectro político? Várias teorias surgiram através da observação da desintegração das sociedades ocidentais, esse artigo irá tratar de um assunto um pouco apagado e deixado de lado nesse grande debate do nosso tempo. Entretanto é algo que pode explicar muito bem o fenômeno.
Durante os anos 2000, não apenas no Brasil mas em todo o ocidente, vimos uma expansão inédita e nunca antes vista do número de jovens com diplomas universitários, o senso comum diz que isso seria uma coisa boa, mas como pudemos observar nos últimos anos na realidade tal fato foi algo negativo por um encadeamento de fatores relacionados a aceleração do fenômeno da globalização após o fim da guerra fria nos anos 90. Algumas perguntas interessantes podem ser extraídas disso, por exemplo: Porque só estamos percebendo esse efeito agora? São dois motivos primordiais, primeiro é o tempo que se leva para cursos universitários serem completados, meia década em média, segundo que leva um tempo até o mercado, de forma geral, não conseguir absorver tanta mão de obra.
Outra pergunta interessante é porque países desenvolvidos também sofreram com isso.No Brasil todos se lembram do Boom dos cursos de direito e engenharia cerca de uma década atrás, e hoje todos veem as manchetes nos jornais dos profissionais dessas áreas trabalhando como Uber e sofrendo com salários ridiculamente baixos para o nível de estudo exigido por essas carreiras. A explicação é bem óbvia e não passa por aumento de pisos salariais como alguns pensam, a resposta é que existe hoje um excesso de oferta para a demanda. Mas e a Europa e os Estados Unidos? Porque sofrem com isso?
Os motivos são diferentes, a globalização e a inovação tecnológica são os principais responsáveis, o aprofundamento do processo de globalização internacionalizou toda a cadeia de produção das grandes indústrias e também facilitou a contratação de funcionários do mundo todo, ampliando os fluxos imigratórios nos principais países do mundo, já a inovação tecnológica eliminou vários postos de trabalho e vai eliminar vários outros com o avanço da robótica e da inteligência artificial (algo que já iria acontecer e foi acelerado pela pandemia do COVID-19)
Após essa breve explicação da situação dos mercados educacionais no mundo hoje podemos passar para o tópico principal do artigo, como isso teria impactado na situação política desses países? O mercado educacional vive da venda de uma promessa muito específica e desejável pela ampla maioria da população dos países em análise, a promessa de que uma vez que você tenha um diploma universitário você se torna parte da elite do país em que vive. E isso funcionou durante boa parte do tempo desde o século XIX, mas no momento essa venda de promessa pode ser a grande responsável pela instabilidade política e social do nosso tempo. Com as empresas não conseguindo absorver tamanha mão de obra, o prestígio do diploma caiu, e não apenas isso, é demandado dos funcionários muito mais do que era até pouco tempo atrás, domínio de várias línguas, vários MBAs, pós graduações, mestrados profissionais etc… Mas a grande parte desses funcionários não tem carreira longa o suficiente na empresa para chegar a um carco de CCO ou CEO. Sendo demitidos ou mudando de empresa por razões que vão desde boicote, remuneração ou outras ambições profissionais, e aí mora o segundo problema que devemos nos atentar, o fenômeno do Overeducation ( quando se é tão qualificado que você se torna impossível de pagar), porém sem o Overeducation a entrada no mercado se torna difícil, pois as empresas agora não investem no desenvolvimento dos seus empregados, preferindo a facilidade de recrutar em um mercado global de talentos um funcionário já pronto para realizar a função.
O objetivo aqui não é avaliar se esse sistema é positivo ou negativo, mas demonstrar a consequência política e social desse sistema. Quando se é prometido algo, o indivíduo realiza o esforço necessário para alcançar isso, mas o que lhe foi prometido (dinheiro e status) não lhe é entregue, o caminho natural para isso é o ressentimento, e se tem uma coisa que a política contemporânea nos ensina é que o ressentimento é uma arma extremamente poderosa e que facilita a radicalização. Desde a Roma antiga e a China imperial passando pela idade média, as revoluções liberais, as grandes guerras e a guerra fria as sociedades passam por momentos de estabilidade e instabilidade política, e isso tem muito a ver com a elite de cada uma dessas sociedades (seja ela financeira, comercial, cultural, política ou intelectual).
Tomemos como exemplo os Estados Unidos, qualquer observador da política americana percebe que o congresso entrou em Deadlock.
Isso ocorre quando o status-quo legislativo fica entre a intenção do governo e o legislador mediano, como os dois atores (executivo e legislativo) gostariam de mudá-lo em direções opostas, então não haverá acordo, mas uma paralisia legislativa, Todas as questões relacionadas posicionadas no intervalo entre os dois atores ficarão na paralisia, e todas as questões para as quais não se encontra um acordo estão nessa posição. Esse intervalo é o Deadlock.” (GIANTURCO, 2018, p 345)
Republicanos e Democratas não mais operam na lógica do Compromise vista durante o século XX, portanto a possibilidade de legislações que realmente melhorem a vida dos americanos é pequena, as elites políticas americanas estão em conflito, e por consequência o próprio povo americano também está, reproduzindo na sociedade o mesmo conflito político visto em Washington. Estaria esse conflito relacionado com o atual modelo de mercado educacional e sua formação de elites? Quem conta como elite e como a competição entre elas ocorre também é importante, um grande número de jovens qualificados maior do que o número de postos de trabalho a altura dessa qualificação, seja no governo ou na iniciativa privada leva a problemas políticos e sociais muito mais complexos do que aquilo que é medido em taxas de desemprego pelos economistas, especialmente quando os casos de sucesso são pequenos comparados aos casos de fracasso.
Como dito anteriormente, o ressentimento é particularmente forte entre aqueles que foram induzidos a acreditar que eles fariam parte da elite, pessoas articuladas, altamente qualificadas se rebelam, produzindo um atropelo nos sistemas econômicos e políticos, os diferentes tipos de elites param de cooperar e a antiga ordem social acaba por ruir. Se aplicarmos esse mesmo método de análise centrado nas elites ao longo da história podemos notar em ocasiões como a Revolução Francesa que a teoria se sustenta, como exposto pelo historiador Hugh Trevor-Roper “Crises sociais não são causadas pela oposição clara de interesses mutuamente exclusivos mas pelo cabo de guerra de interesses opostos internos “ (TREVOR-ROPER, 1959, p 31-64). A Revolução francesa então não foi primariamente produto de miséria na sociedade, mas uma batalha entre a subempregada classe educada ( burguesia ) e donos de terra beneficidados pela hereditariedade do antigo regime ( nobreza )
Essa superprodução de elites, também explica o porque jovens estão postergando o início da vida adulta, postergando o casamento, a aquisição de uma casa própria e a paternidade/maternidade. Se tornou excepcionalmente difícil para um jovem atingir o status de elite, ainda que trabalhe duro e vá para uma universidade de grande prestígio. Os preços das casas são tão altos que apenas herdeiros têm a possibilidade de emular a qualidade de vida dos seus pais. De acordo com o antropólogo Peter Turchin, “Apenas os Estados Unidos produzem todo ano um excedente de advogados de 25.000, cerca de 30% dos Britânicos possuem qualificações muito acima do trabalho disponível ” (TURCHIN. 2010, p 608 )
Todo esse quebra cabeças ajuda a explicar o motivo para que pessoas que, ao menos teoricamente deveriam ser as menos sugestionáveis e suscetivas a manipulação, são as mais atraídas pelo radicalismo que dá o tom da política ocidental atual.
Referências bibliográficas
GIANTURCO, Adriano, A Ciência da Política, Rio de Janeiro, 2018
TREVOR-HOPER, Hugh, The General Crisis of the Seventeenth Century”, Past and Present, N 16, 1959, Pp. 31–64.
TURCHIN, Peter, Political instability may be a contributor in the coming decade. Nature , 463, 2010, Pp 608.