A eleição de Donald Trump nos Estados Unidos em 2016 pode ser encarada como uma eleição de ruptura, uma ruptura com o pensamento que influencia a política americana a décadas, em especial nos governos republicanos de Ronald Reagan e George W. Bush, mas que não isentou os democratas, falo do pensamento neoconservador.
Para compreender o neoconservadorismo, temos antes que compreender que sua base é sustentada nas teses do marxista russo Leon Trotsky, teses que se tornaram debate sobre o meio de ação do movimento socialista na União Soviética e no mundo após a morte de Lênin, no que ficou conhecido como a disputa entre “socialismo em um país só” do lado stalinista e “revolução permanente” do lado trotskista. O socialismo de um país só, tese de Nikolai Buckarin e adotada por Stalin, sustentava a ideia de que a União Soviética, antes de buscar a revolução global, deveria se fortalecer nacionalmente, principalmente pelo fato de que revoluções proletárias, com exceção da Rússia, estavam sofrendo constantes derrotas, como a Revolução Húngara de 1919 e a Revolução de Novembro na Alemanha em 1918. Trotsky defendia a necessidade constante de revoluções globais e a impossibilidade do socialismo em um só país, pois para Trotsky, o comunismo nacional seria incapaz de resistir a ofensiva do mundo capitalista. O processo revolucionário imperialista deveria se manter continuadamente para impor, pela força, o socialismo, consequentemente o comunismo, daí o fim da história na concepção teleológica hegeliana no marxismo.
O neoconservadorismo surge com a compreensão de alguns trotskistas de que o socialismo fracassou em fazer a revolução permanente e levar ao final da história. Para os neoconservadores, o novo agente revolucionário é os Estados Unidos e sua democracia. Incapazes de abandonar o caráter revolucionário, os agora convertidos a “neocons” adaptaram a revolução permanente de Trotsky ao ideal de democracia liberal americana. Preservam-se os métodos e o caráter revolucionário, mas troca-se a cosmovisão ideológica.
O processo de migração dos tais trotskistas para a direita ocorreu durante a década de 60 por intelectuais como Irving Kristol e Norman Podhoretz e ganharam status de poder de fato no governo de Ronald Reagan, servindo de base para sua política externa, assim como no governo George W. Bush, vide o exemplo das invasões militares no Iraque e Afeganistão após o 11 de Setembro que tinham por princípio, exportar mediante a força, a democracia ao Oriente Médio.
Embora há no discurso neoconservador a defesa de certos valores morais cristãos, o neoconservadorismo é uma ideologia secular e nem todos são de fato, opositores de posições morais liberais, vide exemplos como Robert Kagan e Colin Powell, o último declaradamente pró-aborto e defensor do “casamento” entre pessoas do mesmo sexo.
A Ruptura de Trump
Nas primárias republicanas de 2015, o senador Rand Paul, num comício republicano em Nashua, New Hampshire, acusou a ex-secretária de estado e candidata do Partido Democrata a presidência em 2016, Hillary Clinton, de ser neoconservadora em política externa, acusando-a de seguir a mesma doutrina intervencionista de Bush. Não é enganosa tal acusação, Clinton apoiou o uso da força militar no Iraque e é uma admiradora de Henry Kissinger.
Não é à toa que políticos e intelectuais de grande influência no movimento neoconservador como Bill Kristol (filho de Irving Kristol), Robert Kagan, Collin Powell e Max Boot apoiaram Hillary Clinton a presidência dos Estados Unidos, o mesmo se repete em 2020 se tratando de Joe Biden. A razão de tais apoios é a ruptura de Trump com décadas de uma visão que dominou boa parte da política americana dos anos 80 até 2016, ano da eleição de Trump.
Trump recolocou no debate a velha disputa ideológica entre o movimento conservador americano: paleoconservadorismo x neoconservadorismo. Os paleoconservadores se aproximam da visão originária dos Founding Fathers: Federalismo, não intervencionismo e livre-mercado, junto aos valores tradicionais religiosos, especialmente do Sul dos Estados Unidos. Opositores do multiculturalismo, da imigração livre e do globalismo, se aproximam da “velha direita” pré-1950. Os “paleocons” se tornaram um movimento intelectual marginalizado a partir dos anos 80 quando perderam a disputa ideológica no governo de Ronald Reagan. Após a eleição de Reagan na disputa pela nomeação da National Endowment for the Humanities (NEH), agencia governamental dedicada a pesquisa e educação no que trata das áreas acadêmicas de humanidades, o nome sugerido pelos paleoconservadores foi de Mel Bradford, professor de Literatura pela Universidade de Dallas, Bradford era um influente intelectual paleoconservador, mas certas críticas e posições batiam de frente com lideranças do movimento neoconservador, figuras como Edwin Feulner e o já citado Irving Kristol. Críticas ao unionismo de Abraham Lincoln, tido por Bradford como um radical que suprimiu as diferenças culturais e homogeneizou a sociedade, mantendo-a sob a tutela de uma autoridade central e autoritária. Tal posição levou Bradford ao escrutínio entre os republicanos e por consequência disso, do próprio paleoconservadorismo do ponto de vista político, se restringindo a políticos como Pat Buchanan, que viria a ser candidato a presidência em 1992 e 1996, derrotado em ambas nas primárias republicanas. Os neoconservadores venceram a batalha por um dos principais meios culturais do governo Reagan, conseguiram a indicação de William Bennet, acadêmico da Universidade da Carolina do Norte.
A disputa foi revivida após o atentado terrorista às torres gêmeas, mais conhecido pela sua data, 11 de setembro, novamente, o campo neoconservador saiu vitorioso na política externa americana. Bush invadiu o Iraque e Afeganistão, protagonizou guerras com os tais objetivos de exportar democracia, a revolução permanente trotskista invertida ideologicamente, levou a desestabilização da região para mudar o regime, passar por cima das diferentes culturas do Oriente Médio para impor a democracia liberal. Como já dito anteriormente, o neoconservadorismo nasce por preceitos revolucionários, herdeiros do trotskismo e do marxismo. Embora democrata, Obama, em menor grau, manteve a política externa desastrosa de Bush no Oriente Médio, e aí chegamos em um ponto fundamental para compreender a ruptura de Trump e o apoio dos “neocons” aos democratas: o neoconservadorismo no que se trata de política externa, hoje é consenso bipartidário nas alas tradicionais de ambos os partidos.
Trump não só rompeu com o consenso, como retirou o paleoconservadorismo da marginalidade. Trouxe para o debate os problemas do multiculturalismo, do globalismo, da imigração descontrolada, do fracasso da política externa americana nas últimas décadas e rejeitando a ideia dos Estados Unidos como “polícia do mundo”. Colocou o nacionalismo americano e a tradição cristã no centro do debate. Trump confrontou o establishment como nem um outro teve coragem e não teve medo de confrontar certos consensos dos velhos políticos do Partido Republicano.
A campanha de Trump foi fortemente crítico do NAFTA e outros acordos de livre-mercado que enfraquecia a indústria nacional americana, critico voraz da Guerra do Golfo, assim como das invasões “bushistas”.
Trump aprovou um plano para retirar mais de 9 mil soldados da Alemanha, a retirada de tropas da Síria e ao tomar tal decisão, Trump fez uma declaração simbólica: “Está na hora de sairmos destas ridículas guerras sem fim, muitas delas tribais, e trazer nossos soldados para casa. Lutaremos onde for para o nosso benefício, e só lutaremos para ganhar. Turquia, Europa, Síria, Irã, Iraque, Rússia e os curdos terão que solucionar a situação e ver o que querem fazer com os combatentes capturados pelo Estado Islâmico na sua ‘vizinhança”.
Trump talvez seja a maior ruptura política americana desde Franklin Delano Roosevelt. Goste ou não, Trump é um dos presidentes mais importantes da história dos Estados Unidos e do conservadorismo americano, longe da ideologia revolucionária e trotskistas dos seus desafetos “neocons”, o trumpismo, a práxis do paleoconservadorismo na política, é o mais próximo dos Estados Unidos dos Founding Fathers que qualquer governo nos últimos cem anos.