Mais um ciclo eleitoral nos Estados Unidos e volta-se ao debate sobre o sistema do Colégio Eleitoral e suas polêmicas. Muitos especialistas em política americana contestam o modelo adotado pelos “founding fathers” para eleger o chefe do poder executivo, por ser anti-majoritário. Outros defendem o modelo pela proteção do poder dos estados e das localidades, evitando a criação de uma “tirania da maioria”, termo cunhado por John Adams. O autor deste artigo se posiciona a favor do segundo grupo, sem hesitação.
Os Estados Unidos são o pai da democracia liberal e, ao longo de seus quase trezentos anos de história, exportaram seu modelo para o mundo: laicismo, democracia representativa, divisão de poderes e o ideal liberal de sociedade civil. Sou crítico contumaz do modelo americano. Entretanto, uma de suas peculiaridades mais bemsucedidas, e que podemos entender como um aspecto virtuoso do modelo de Estado americano — que limita os graves defeitos da democracia liberal, especialmente a tendência à massificação —, não foi exportada. Pelo contrário, o sistema é alvo de críticas mais do que de elogios. Neste artigo, defenderei o ponto de vista dos elogiosos ao Colégio Eleitoral.
O Colégio Eleitoral é o sistema utilizado nos Estados Unidos para eleger o presidente e o vice-presidente. Cada estado tem um número de delegados igual à soma de seus senadores e representantes no Congresso. Ao todo, há 538 eleitores, e para vencer, um candidato precisa de pelo menos 270 votos eleitorais.
Quando os cidadãos votam nas eleições presidenciais, na verdade, estão escolhendo um grupo de delegados que se compromete a votar em um determinado candidato. A maioria dos estados adota o sistema “winner-takes-all”, no qual o candidato que recebe a maioria dos votos populares no estado ganha todos os delegados eleitorais desse estado. Isso pode resultar em um cenário em que um candidato vence a presidência mesmo sem ter a maioria dos votos populares, como ocorreu nas eleições de 2000 e 2016.
O Colégio Eleitoral foi criado exatamente por causa de uma característica da formação dos Estados Unidos, que é o federalismo centrífugo, descentralizado e localista.
Antes da independência, as 13 colônias americanas eram entidades autônomas sob o controle da Coroa britânica, cada uma com seu próprio governo local, legislatura e estruturas de administração. Quando as colônias decidiram romper com o controle britânico, fizeram isso coletivamente, mas sem a intenção de formar um governo central poderoso.
Após a Revolução Americana, as 13 colônias se tornaram estados independentes e soberanos. Para organizar o relacionamento entre elas, foi adotado um primeiro sistema de governo nacional chamado Artigos da Confederação, que criou uma união muito fraca entre os estados. Nesse arranjo, o governo central tinha poucos poderes, e os estados mantinham sua plena soberania. Algumas características desse período incluem:
Poder quase inexistente do governo central: O Congresso da Confederação não tinha o poder de taxar ou regulamentar o comércio, e não havia um executivo forte nem um sistema judicial nacional.
Autonomia total dos estados: Os estados controlavam suas próprias políticas econômicas, moedas, exércitos e diplomacia, o que gerava uma enorme falta de coordenação.
Tendências centrífugas evidentes: A ausência de um poder central eficaz refletia a desconfiança das colônias de qualquer forma de autoridade centralizada, já que haviam acabado de lutar contra um império centralizador (a Grã-Bretanha).
Esse arranjo levou a vários problemas, como disputas comerciais entre estados, dificuldades em financiar o governo central e incapacidade de responder de forma coesa a ameaças externas.
Reconhecendo que os Artigos da Confederação eram inadequados para sustentar uma nação unida, foi convocada a Convenção Constitucional em 1787. No entanto, mesmo durante essa convenção, a questão central era: quanta autoridade o governo central deveria ter em relação aos estados?
Federalistas vs. Anti-Federalistas: Havia um debate intenso entre os que queriam um governo federal mais forte (os Federalistas, como Alexander Hamilton) e aqueles que defendiam a preservação da autonomia dos estados (os Anti-Federalistas, como Thomas Jefferson).
Compromissos constitucionais: A Constituição que emergiu dessa convenção era um compromisso entre essas duas visões. Embora o governo federal fosse criado com poderes expressos (tributação, regulamentação do comércio interestadual, criação de um exército), a autonomia dos estados foi amplamente preservada, especialmente por meio da 10ª Emenda, que reservava aos estados todos os poderes não delegados expressamente ao governo federal.
Portanto, os Estados Unidos nascem, não por um elemento nacional de cima para baixo, como no Brasil, onde a expansão territorial se deu por conquistas, especialmente pelos bandeirantes e sob uma bandeira nacional, mas sim pela unificação de estados independentes e com elevados graus de autonomia, que, por meio de uma Constituição, estabeleceram uma unificação. Nos Estados Unidos, há um princípio de o Estado ser a esfera de poder mais relevante do que a União, embora certos processos históricos, como a Guerra Civil Americana e o New Deal de Franklin Delano Roosevelt, tenham levado a uma maior concentração de poder em Washington. Era necessário construir um modelo de sistema de votos que fosse representativo dos estados e dos poderes locais.
Na Convenção Constitucional de 1787, havia uma preocupação significativa sobre como equilibrar os interesses de estados grandes e pequenos. Estados com maior população, como a Virgínia, queriam mais influência, enquanto estados menores, como Delaware, temiam ser ofuscados no processo político.
Outro fator determinante para a criação do Colégio Eleitoral era o fato de que muitos dos fundadores, incluindo figuras como James Madison e Alexander Hamilton, eram céticos quanto à democracia direta. Eles temiam que o eleitorado geral, especialmente em uma nação tão vasta e diversificada como os Estados Unidos, fosse suscetível à manipulação, demagogia ou impulsos momentâneos. O Colégio Eleitoral servia como uma “camada intermediária” entre o povo e a escolha do presidente. Na visão deles, os eleitores do Colégio seriam indivíduos informados e respeitáveis, capazes de tomar uma decisão ponderada caso o público em geral fosse influenciado por um candidato inadequado.
Nos últimos anos, o sistema do Colégio Eleitoral tem enfrentado críticas devido à discrepância em relação ao voto popular. Nas últimas seis eleições, o candidato eleito obteve menos votos populares que o candidato derrotado, mas venceu no Colégio Eleitoral. Em 2016, essa diferença foi ainda mais radical, já que Trump venceu com ampla maioria de votos no Colégio (306), enquanto perdeu o voto popular por 2,1% de diferença.
Deve-se analisar um ponto: a intenção do Colégio Eleitoral era enfatizar a relevância dos estados menores, e os processos eleitorais de Bush em 2000 e Trump em 2016 cumpriram esse objetivo. Pelas margens de vitória dos candidatos democratas nas eleições de 2000 a 2020, em estados como Califórnia e Nova York, seria suficiente para eleger o presidente, exceto nas eleições de 2004 e 2008:
Ou seja, a ampla maioria da população em dois estados progressistas seria responsável por determinar o governo de todo o país, ignorando a posição da maioria dos estados.
O Colégio Eleitoral ajuda a garantir que os candidatos considerem uma variedade de interesses regionais, em vez de apenas focar em áreas urbanas densamente povoadas. Califórnia e Nova York são conhecidos por serem estados altamente urbanizados e com tendências políticas mais progressistas, enquanto muitos estados menores, especialmente no interior e no sul, tendem a ser mais conservadores e rurais.
O modelo exige, necessariamente, a busca por entender as demandas locais, de estados menores, de localidades pequenas e comunidades. Trump ganhou em 2016 por falar para um eleitorado abandonado, esquecido, jogado às traças pela desindustrialização, pelo fim da indústria pesada, pela fuga de empregos para a China, por uma situação de pobreza e precariedade não atendida pelas elites partidárias. Um eleitor que outrora era tido como indiferente para o cenário eleitoral nacional foi trazido à relevância por Trump. Esses eleitores estão em estados menores se comparados às metrópoles urbanas e aos estados amplamente densos, como os já citados Califórnia e Nova York, que, em uma eleição de voto popular, na qual a massa amplamente concentrada nos grandes centros seria a única verdadeiramente decisiva e determinante, não teriam voz, não seriam representados. Esse homem branco, empobrecido, do Rust Belt, vindo das cidades médias e pequenas, não teria voz, não seria representado.
A democracia liberal padrão da maioria das nações ocidentais nos apresenta uma falsa representatividade. Se compararmos com a representatividade antiga, medieval, das corporações de ofício e outras instituições intermediárias da sociedade medieval, são formas de representatividade mais autênticas, porque estavam profundamente enraizadas nas realidades locais, profissionais e comunitárias. Em oposição, a democracia liberal de massas se caracteriza pela distância em relação aos interesses específicos de comunidades locais, diluindo ou marginalizando os interesses específicos das localidades, subrepresentados dentro de uma estrutura massificada.
Os Estados Unidos são também uma democracia liberal de massas, mas com certos limitantes que impedem uma massificação absoluta. É assim no que tange os condados, que na Europa medieval, especialmente na Inglaterra, eram divisões territoriais administradas por um conde (ou “earl” na Inglaterra). Esses territórios funcionavam como subdivisões do reino, servindo tanto para fins administrativos quanto judiciais. Cada condado tinha uma autoridade local (um “sheriff”, derivado de “shire-reeve”), que administrava a lei, coletava impostos e geria o território em nome do monarca. A república americana aplicou esse modelo como forma de descentralizar o poder e administrar melhor vastos territórios. O Colégio Eleitoral serve ao mesmo princípio: limitar a massificação e descentralizar o sistema democrático. As perspectivas locais têm relevância, são importantes, e essas localidades, pelo voto nos estados, podem eleger um presidente e tornar suas demandas em concretude política. A representatividade vai além das massas anônimas e amorfas das metrópoles.